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Entendendo Bolsonaro

Constituição e LDB impedem limite do MEC a humanidades

Entendendo Bolsonaro

26/04/2019 17h49

(Crédito: Isac Nóbrega/PR/Agência Brasil)

*Igor Tadeu Camilo Rocha

Na manhã da sexta-feira, dia 26 de abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, via Twitter, que o governo estuda descentralizar o investimento em cursos de humanidades para priorizar outras áreas:

Na noite do dia anterior, em sua live noutra rede social, o Facebook, o presidente eleito em 2018, ao lado do atual ministro à frente do MEC, deu os mesmos indicativos. Segundo Weintraub, a inspiração seria o modelo adotado no Japão, país que, segundo ele, "cobra das faculdades de humanas para investir em cursos que têm retorno para a sociedade". Concluindo as manifestações sobre o caso em rede social, novamente no Twitter, Bolsonaro disse:

Como era de se esperar, as falas provocaram várias reações. Pretendo, nesse artigo, focar em duas ordens delas, que ao final acabam convergindo a um aspecto importante do atual governo na sua relação à educação e pesquisa. O primeiro deles é relacionado à questão da autonomia universitária; o segundo, não menos importante, é quanto ao que as ciências humanas representam na narrativa da atual agenda política no poder, no Brasil. Ao fim, espero esboçar uma breve reflexão sobre a forma específica de pensar a universidade e a educação que predomina no discurso político do bolsonarismo.

Uma das reações que têm tido grande repercussão veio do coordenador da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cientista político Daniel Cara. Com precisão, Daniel rebateu Weintraub, dizendo que as "universidades públicas são administradas com o princípio de autonomia universitária, o que fortalece o princípio de liberdade de cátedra". Completa dizendo que "o ministro só quer aparecer' e que "a proposta não tem consistência", no caso, se referindo a um alarme veiculado em diversos meios, entre os quais acadêmicos ligados às Ciências Humanas, sobre uma possível extinção dos cursos de sociologia e filosofia. Diz, ainda, que é "muito difícil que as universidades aceitem este tipo de interferência". As declarações circulam em áudio e foram parcialmente transcritas pelo site Brasil 247.

De fato, Daniel Cara acerta quando se refere à autonomia universitária, conforme determina o artigo 207 da Constituição Federal de 1988. Ele diz que "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão." Existe, assim, uma barreira legal para que cursos como sociologia, filosofia ou quaisquer outros sejam asfixiados ou simplesmente extintos pelo Planalto ou pelo MEC. É o que declarou o ex-presidente do INEP Francisco Soares à Gaúcha ZH, uma vez que, mesmo o governo podendo priorizar algumas áreas em detrimento de outras (o que já existe) e tenha força no orçamento das universidades, não poderia, por exemplo, interferir na distribuição de recursos das universidades – um dos pontos que determina constitucionalmente o princípio de autonomia.

A doutora em Educação Monica Ribeiro da Silva, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), declarou na mesma matéria outro ponto importante: a própria Lei de Diretrizes e Bases, no seu artigo 53, especifica as várias atribuições asseguradas à universidade no uso de sua autonomia. No seu item I, diz claramente que, no exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, "criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino". Em suma, se a dita "descentralização" significar extinguir os cursos, há barreiras legais importantes para serem levadas em consideração.

A liberdade de cátedra no Brasil tem sido objeto de forte ataque desde que veio à esfera pública o movimento chamado "Escola sem Partido", que, efetivamente, representa um "sem partido" entre aspas, uma vez que o apelo a uma neutralidade dos docentes refere-se somente a ideias tomadas como liberais ou à esquerda. Uma confirmação disso está no fato de uma de suas principais lideranças ter feito, em sala de aula, como amplamente noticiado, campanha para o atual presidente Jair Bolsonaro. Quanto à liberdade de pesquisa, há diversas denúncias sobre violações em áreas como a antropologia e outras relacionadas a questões como interesses de quilombolas e indígenas, bem como na área ambiental, sobretudo naquilo que entram em conflito com ruralistas, bem como o aparelhamento militar e o desmonte de institutos importantes nessas áreas, como ICMBio.

Ao nomear um general que fora exonerado, em 2010, ao criticar a Comissão Nacional da Verdade publicamente, acusando-a de caluniosa e composta por fanáticos, a preocupação de pesquisadores que se dedicam a discutir sobre memórias e reparação de crimes da ditadura militar brasileira (1964-1985) também se materializa. Um fato recente nesse sentido foi a extinção do grupo de trabalho que se dedicava à busca de desaparecidos políticos.

Quanto à autonomia universitária em si, matérias do início do ano, quando Ricardo Vélez Rodriguez ainda estava à frente do MEC, falaram sobre planos de um "mapeamento ideológico" de reitores das universidades, ou ainda que Bolsonaro planejaria escolher, a despeito das eleições internas das universidades, 11 reitores, fatos que têm sido objeto de fortes críticas da Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior – ANDES. Foi, ainda, amplamente anunciada pelo mesmo ministério a intenção de levar à frente uma "lava-jato" da educação, ainda que seus objetivos e procedimentos nunca, até o momento, tivessem sido mais detalhados. Por sua vez, a preocupação é que isso chegue ao ponto de algo como a CPI das universidades, que acontece em São Paulo, com apoio da base do governo João Doria (PSDB).

Dessa maneira, é importante ter em consideração que as barreiras legais existem, mas há aqueles dispostos à sua enfrentação, e que podem nos impor um processo bastante traumático e doloroso. Sobretudo, considerando os constantes cortes no financiamento das universidades e ciências no Brasil, sobretudo a partir de 2015. A uma asfixia financeira, se somam, como mencionado acima, diversas ameaças a liberdades do próprio exercício da pesquisa e docência em alguns âmbitos.

Além disso, é importante fazer alguns breves apontamentos sobre a importância das humanidades no discurso bolsonarista. Trata-se, como é notório, de um governo que não se furta em disputar um ponto de vista revisionista sobre a ditadura militar brasileira, e que tem representantes (como o próprio presidente e o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo) que declararam que o nazismo seria uma doutrina de esquerda. Ainda na campanha, repercutiu bastante a equivocada asserção de Bolsonaro, em entrevista ao Jornal Nacional, de que os portugueses nunca teriam pisado na África – em mais um dos inúmeros episódios em que o revisionismo da história colonial serve para se atacar ações afirmativas no presente.

Muitas vezes tratadas como frutos de pura ignorância, tais asserções significam usos públicos específicos da história e da memória. E isso indica uma importância das humanidades no bolsonarismo: é parte constituinte de seu discurso disputar pontos de vista hegemônicos nesta seara, seja do ponto de vista de memória histórica ou de definições de esquerda e direita. Fazem parte de uma guerra cultural, que tem o olavismo como chave importante.

Mas junto ao olavismo, talvez em complemento a ele, existe um pensamento tecnicista da educação que a associa equivocadamente ao desenvolvimento econômico imediato. O próprio ministro da Educação declarou que no Nordeste brasileiro não se deveria estudar filosofia, aludindo a uma ideia de que ali se deveria estudar áreas que contribuíssem para a superação de um pretenso atraso econômico. É consenso entre os especialistas em educação e desenvolvimento científico, em especial aplicados ao desenvolvimento econômico, que um somente conduz ao outro quando se torna um projeto de Estado feito a longo prazo. A esse respeito, o Dossiê Ciência e Desenvolvimento Sustentável, publicado na Revista Estudos Avançados, é uma leitura fundamental.

Além disso, o próprio modelo japonês (que recomendou abolir departamentos de ciências humanas de suas universidades) parece ser desconhecido pelo ministro, uma vez que ele próprio sofreu resistências e obrigou o governo a recuar quanto a ele pouco tempo depois, além de apontar (com pesquisas de áreas de humanidades!) que as razões da crise que o governo tentava enfrentar eram outras. O Brasil possui baixos níveis de investimentos em ciência, em comparação com outros países em desenvolvimento, e tudo indica que esse problema persistirá e se agravará, bem como o próprio estado de depressão econômica que o país enfrenta não será contornado – pelo menos não o será de forma "imediata", como disseram o ministro e o presidente – com o investimento (reforço, baixo) pontual em poucas áreas.

Tecnicismo e guerra cultural não são meios de se contornar crise alguma. No melhor cenário possível, não fazem qualquer diferença para modificar a realidade da educação brasileira.

*Igor Tadeu Camilo Rocha é mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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