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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro na ONU: globalização dará palco a um de seus adversários

Entendendo Bolsonaro

23/09/2019 15h01

Presidente Jair Bolsonaro discursa no Fórum Econômico Mundial, em janeiro. Nesta terça (24), estará novamente sob o olhar de líderes mundiais, ao abrir a Assembleia Geral da ONU (Crédito: World Economic Forum/Youtube)

* Vinícius Rodrigues Vieira

O presidente Jair Bolsonaro chega hoje (23) a Nova York, onde discursará amanhã (24) na abertura da 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

O acontecimento ilustra um aspecto curioso do bolsonarismo, que é parte de uma nova direita antiglobalização, contrária ao multilateralismo — a busca por soluções conjuntas entre três ou mais nações — , mas que não tem vergonha em utilizar sua principal vitrine — a ONU — para ganhar sobrevida política e mitigar os efeitos colaterais que sua visão de mundo causa sobre seus próprios aliados de ocasião.

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Isso explica a insistência do presidente Jair Bolsonaro em viajar à sede da organização para fazer o discurso de abertura mesmo convalescendo de uma cirurgia. Após a repercussão global da onda de incêndios acima da média histórica na Amazônia, a imagem externa do país — que já andava comprometida desde as eleições de outubro passado — piorou a velocidades jamais vistas para uma nação que havia se vendido nos últimos anos como potência ambiental, impactando até mesmo as exportações do agronegócio.

O caso mais notório foi o boicote ao couro nacional por grandes marcas do varejo dos EUA e Europa, entre elas a H&M, marca bastante prestigiada por brasileiros que têm condições de tirar férias no exterior e trazer a bagagem cheia.

Contra o boicote e otras cositas más advindas da verborragia do presidente e da negligência de seu governo em relação a evidências científicas que corroboram o aumento do desmatamento, Bolsonaro levou em sua comitiva a índia Ysani Kalapalo, da região do Xingu, embora segundo entidades da região ela não represente nenhuma associação indígena.

Relatos de bastidor apontam que Bolsonaro lerá um discurso para demonstrar ao mundo que o Brasil tem preocupação, sim, com a questão ambiental. Ademais, o presidente citaria a Operação Acolhida, comandada por militares para receber refugiados venezuelanos.

"Nós temos que falar do patriotismo nosso, da questão da soberania, do que o Brasil representa para o mundo, sempre aberto, um país cujo povo é bem recebido em qualquer lugar. Aqui também tem formação de gente do mundo todo".

Jair Bolsonaro, em entrevista a jornalistas na sexta-feira (20)

Mas preservação do meio ambiente e proteção a imigrantes não era coisa do "marxismo cultural" que a globalização— ou, melhor dizendo, 'globalismo', como gosta o chanceler Ernesto Araújo — impôs aos Estados soberanos?

A nova direita não se envergonha de faturar usando ferramentas de seus inimigos caso isso lhe seja útil — à esquerda, líderes socialistas pragmáticos como Lênin e Stalin devem se remexer no túmulo invejando a habilidade de líderes como Bolsonaro em adotar conforme sua conveniência uma narrativa.

O defensor da soberania e da linha dura não se envergonha em discursar – supostamente – a favor das florestas e da diversidade de origem ainda que o Brasil que defende seja supostamente um povo único, teoricamente ocidental.

Quando o assunto é falta de vergonha em usar as benesses do 'globalismo'— entre elas, as organizações internacionais e as conexões propiciadas pelo avanço nas tecnologias de comunicação sem as quais redes sociais não existiriam – a favor de seu projeto nacionalista-populista, Bolsonaro não está sozinho.

Por exemplo, o Brexit só foi possível porque o Parlamento Europeu deu uma tribuna ao Partido da Independência do Reino Unido (UKIP). Tendo ocorrido a cada cinco anos desde 1979, as eleições diretas para o Parlamento conferiram nos últimos 15 anos em maior ou menor escala, nos países membros da União Europeia (UE) — , a mais avançada experiência multilateral em nível regional — , votos suficientes para a formação de uma bancada significativamente eurocética, a qual atingiu sua maior dimensão nas eleições deste ano.

No caso do UKIP, seu principal líder, Nigel Farage — eurodeputado desde 1999 — , levou os Conservadores — no poder desde 2010 — a levar mais a sério os eurocéticos dentro e fora de seu próprio partido. Com medo de um avanço do UKIP na política britânica, o primeiro-ministro conservador David Cameron convocou o referendo de 2016, cujo resultado abriu as portas para o período de maior instabilidade enfrentado pelos britânicos desde a Segunda Guerra Mundial.

Às vésperas do Brexit, Farage permanece no Parlamento Europeu, tendo sido eleito em maio passado pelo Partido do Brexit — fundado por ele mesmo — para um mandato que, sem a oficialização da saída do Reino Unido da UE, deve durar até 2024.

O esforço de Bolsonaro torna-se ainda mais supreendente porque não passará, devido a suas condições médicas, mais de 30 horas em Nova York, o que deve limitar seus encontros bilaterais — até mesmo com seu grande ídolo Donald J. Trump.

Nem mesmo FHC — o mais globalista dos presidentes —  deu tanta ênfase assim à Assembleia Geral. Ele discursou na abertura — algo que o Brasil faz por tradição desde 1947 — apenas uma vez, em 2001, penúltimo ano de seu segundo e derradeiro mandato, quando, conforme já demonstrei em artigo acadêmico, o "príncipe dos sociólogos" já demonstrava decepção com os parceiros do Norte Global e buscava alianças com o Sul, isto é, o mundo em desenvolvimento e emergente, sem, porém, deixar de acreditar no multilateralismo.

Tais tendências foram aprofundadas por Lula, que usou a Assembleia Geral como vitrine seis vezes — algo lógico para um presidente que procurava assumir projeção global para si e o país, o que, como se viu posteriormente, revelou-se um castelo de areia bancado por relações promíscuas entre o Estado e membros da nata do capitalismo tupiniquim.

Dilma Rousseff — que, como Bolsonaro, não é dotada de grande oratória— não perdeu a chance e fez história em 2011, tornando-se a primeira mulher a abrir os trabalhos da Assembleia e repetiu a dose nos anos seguintes. Michel Temer seguiu a tendência e foi a Nova York em setembro em todos os anos de seu breve mandato, inclusive em 2016, quando não havia passado sequer um mês desde o julgamento de Dilma no Senado, tornando irreversíveis o impeachment e a efetivação de Temer como presidente.

O que esperar do discurso de Jair Bolsonaro? Qualquer que seja a repercussão, ele será, sem dúvida, objeto de estudo para historiadores e especialistas em relações internacionais no futuro — um exemplo de como o multilateralismo e a globalização colocam em evidência seus adversários tal como a democracia acaba sendo, em cada um dos Estados soberanos, uma porta para o surgimento, de tempos em tempos, de tendências autoritárias.

* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco

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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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