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Entendendo Bolsonaro

Ataque aos conselhos é revés para a democracia

Entendendo Bolsonaro

04/10/2019 09h58

(Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil)

*Otávio Dias de Souza Ferreira

De modo permanente, o governo Bolsonaro tem atacado os colegiados diversos com competência para atuar em políticas públicas, o que atinge a política de participação estimulada desde a Constituição Federal de 1988 e aprofundada nos governos progressistas posteriores.

Embora contem com alguns antecedentes temporais, ganharam neste governo contornos peculiares de maior radicalização e, neste ponto, revelam características marcantes da gestão Bolsonaro.

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A formação e o fortalecimento dessas políticas participativas com base na difusão de colegiados com pluralidade de representação e paridade entre agentes do Estado e da sociedade civil remontam ao período de redemocratização.

No caso de assistência social, criança e juventude e saúde, a previsão de conselhos gestores foi consagrada na Constituição Federal de 1988 com determinados incentivos, o que tornou tais colegiados os mais institucionalizados e com maior capilaridade pelo país.

A gradativa expansão de experiências de participação nas diversas áreas de políticas públicas foi resultado, em parte, de uma avaliação positiva da experiência dos arranjos democráticos pioneiros e, em outra, de demandas diversas da sociedade, geralmente em sintonia com um referencial teórico ligado ao pensamento republicano e à teoria democrática contemporânea.

A vivência de numerosos atores da sociedade civil e de membros das instituições do Estado lado a lado nesses colegiados vêm proporcionando uma representação de natureza diversa da tradicional em iniciativas que tendem a fortalecer o accountability, a governança e o provimento de informações para a tomada de decisões das autoridades, com potencial de impactar positivamente a qualidade das políticas públicas.

Diversos estudos empíricos mostraram disparidades nesses arranjos institucionais e identificaram carências que abalam seu desempenho e funcionamento, mas é certo que qualquer construção institucional se beneficia desse aprendizado conquistado e tende a amadurecer com a sua continuidade.

A construção desses arranjos tem como uma das principais motivações o intuito de corrigir distorções das democracias representativas contemporâneas, aproximando as instâncias de poder do cidadão, possibilitando vias alternativas de representação e participação para além do mero ato de votar em escrutínios eleitorais periódicos, alargando o espaço público. Por tais esforços institucionais recentes, o Brasil sagrou-se na condição de referência positiva internacional, inspirando iniciativas similares em muitos outros países.

Como Martelli e Tatagiba lembram, em artigo de apresentação da campanha "O Brasil precisa de conselhos", coordenada pela Rede Democracia & Participação, um grupo de pesquisadores de todo o país organizado justamente em resistência a essa orientação do governo, a promessa de destruição do aparato participativo iniciou-se antes mesmo da posse de Bolsonaro e começou a ser cumprida já no primeiro dia de mandato, com a edição da Medida Provisória nº 870.

Avançou depois com outras iniciativas monocráticas do presidente como com o Decreto nº 9.784, de 7 de maio de 2019, o Decreto nº 9.806, de 28 de maio de 2019, o Decreto nº 9.926, de 19 de julho de 2019, e o Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019. Somente essa última norma extinguiu 650 colegiados, restando apenas cerca de cinquenta no âmbito da União.

Além de suprimir colegiados inteiros, essas medidas retiraram assentos reservados a membros da sociedade civil, anulando a paridade, ferindo o controle social, a circulação de informações para a tomada de decisões, os processos deliberativos e a autonomia desses órgãos.

As mais diversas áreas de políticas públicas foram afetadas, desde a segurança pública até a segurança alimentar, passando por temas como a igualdade racial, o trabalho infantil, a transparência e o combate à corrupção, a defesa do meio ambiente, dos interesses de pessoas portadoras de necessidades especiais, de pessoas com orientação LGBTQ+ e dos índios.

O presidente da República justificou as medidas ofensivas aos conselhos de políticas públicas argumentando que "como regra, a gente não pode ter conselho que não decide nada. Dada a quantidade de pessoas envolvidas, a decisão é quase impossível de ser tomada". E arrematou afirmando categoricamente a intenção de "enxugar os conselhos, extinguir a grande maioria deles para que o governo possa funcionar".

Antes de Bolsonaro, outros ataques foram desferidos contra colegiados dessa natureza, por governos da direita à esquerda no espectro político ideológico, como cortes de verba, de assentos ou a nomeação de pessoas identificadas com a gestão para abalar a atuação autônoma e crítica desses arranjos institucionais.

O governo Temer, por exemplo, não atacou frontalmente os conselhos de políticas públicas, mesmo que tenha por vezes desconsiderado solenemente a existência dessas instâncias. Não há precedentes de intervenção tão violenta em estruturas colegiadas.

Embora a construção de arranjos participativos costume entusiasmar mais os setores da esquerda e o próprio PT tenha criado muitas instâncias participativas e tentado, sem êxito, implementar a Política Nacional de Participação Social, a história mostra como é antiga a valorização de colegiados para assessorar políticas públicas por parte de governos de direita.

A lei de criação do Conselho Penitenciário Paulista, por exemplo, foi editada na véspera do Natal de 1926, pelo então presidente do Estado de São Paulo Carlos de Campos, do Partido Republicano Paulista. Além de autoridades do Ministério Público e da Procuradoria da República, consta na constituição do colegiado a presença de "tres professores de direito ou juristas em actividade forense e dois professores de medicina ou clinicos profissionaes" [sic.].

Em 1971, em plena vigência do Ato Institucional nº 05, o governador Laudo Natel, do partido Arena, reorganizaria o Conselho Estadual de Educação de São Paulo, prevendo a escolha de conselheiros de "notório saber e experiência em matéria de educação".

Registre-se que este conselho havia sido criado em 1963 e que a norma de 1971 muito pouco mudou a sua regulação. Em ambas as normas, de 1926 e 1971, destaca-se o recrutamento de conselheiros com o perfil técnico de especialista no assunto em questão. Diversamente dessa tradição, na intervenção do governo atual no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, foram excluídas justamente as vagas dos especialistas em medicina e em direito.

Pelo menos desde a reação orquestrada contra a edição do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, fruto de construção coletiva plural por parte de numerosos representantes da sociedade civil organizada reunidos em conferências temáticas diversas regionais e nacionais, amplos setores da direita vêm manifestando repúdio às políticas participativas. A própria sabotagem da Política Nacional de Participação Social no Parlamento, liderada por representantes de partidos da direita, sob aplauso de atores da sociedade civil que rotularam o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, de "bolivariano", "golpista" e até de "Decreto dos Sovietes", é um sintoma desse movimento.

Não é qualquer conselho de políticas públicas que faz ressoar vozes críticas na esfera pública, mas somente aqueles mais ativos, com capacidades mínimas institucionais, em que se permite manifestar o pluralismo da sociedade civil. A aversão generalizada a todos os colegiados não levou em conta o seu real poder nem o seu desempenho nem a faculdade da liderança política de ignorar as manifestações desses órgãos.

Ao se sobrepujar ante inúmeros colegiados, o governo Bolsonaro adotou posição com inegável carga simbólica. Atentou contra as políticas participativas partindo de uma suposta associação entre elas e os governos progressistas anteriores, ignorando que elas se tornaram respeitadas ao longo da contínua experiência desde a redemocratização do país, atravessando diferentes gestões de partidos com orientações ideológicas distintas.

Em outro nível, visou marcar posição ideológica por princípio contra a pluralidade, a democracia e em negação à própria política, especialmente no sentido em que Hannah Arendt adota tal conceito, em oposição à violência. O meio monocrático escolhido para essas medidas, decretos presidenciais e medida provisória, reforça o viés autoritário.

Não surpreendeu tanto a postura, vindo de alguém que afirmara publicamente em programa de televisão ser favorável à tortura e que nada mudaria neste país por meio do voto, mas sim por uma guerra civil, devendo-se fazer "o trabalho que a ditadura militar não fez, matando uns trinta mil, começando pelo [então presidente] FHC. Não deixar ir para fora não! Matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem!".

Tais medidas sinalizam que se está a priorizar mais o recurso a determinadas crenças ideológicas e disputas partidárias do que a ciência e a deliberação realizada por especialistas e representantes da sociedade civil organizada; e que para esse governo funcionar não há espaço para dissonância nem para freios.

*Otávio Dias de Souza Ferreira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.

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