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Entendendo Bolsonaro

Paulo Guedes serve a projeto de um novo normal antidemocrático

Entendendo Bolsonaro

26/11/2019 13h36

(Crédito: Leo Pinheiro/Valor)

[RESUMO] Até aqui, o ministro da Economia parecia se conformar com as "alternativas infernais", típicas do novo capitalismo. Mas a fala sobre o AI-5 e a obsessão do governo com o Chile revelam que elas não são mais o suficiente para essa modalidade de liberalismo que não sabe conviver com a democracia e que embarca na estratégia de estabelecer esse "novo normal" que é colocar a possibilidade de um golpe no cotidiano.

*Murilo Cleto 

Após quase duas horas de coletiva ontem (25) em Washington, nos Estados Unidos, o ministro da Economia Paulo Guedes trouxe novamente à tona a possibilidade de uma reedição do AI-5 no Brasil.

"Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5 ", disse Guedes ao relacionar os protestos no Chile com a articulação política do ex-presidente Lula, agora livre depois de nova decisão do STF sobre o cumprimento antecipado de pena.

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Agora ficou difícil de contar só com os dedos da mão a quantidade de vezes que membros do alto escalão do governo ou de pessoas muito próximas a ele cogitam um autogolpe.

Primeiro, ainda durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão disse a jornalistas da GloboNews que essa, de fato, poderia ser uma alternativa em caso de convulsão social.

Poucos dias antes do segundo turno, veio a público um vídeo de Eduardo Bolsonaro dizendo que, para fechar o STF, bastavam um soldado e um cabo – e que ninguém se importaria com isso.

O mesmo filho do presidente acendeu novamente o alerta ao dizer que, se a esquerda brasileira radicalizar como a chilena, a resposta poderia ser um novo AI-5.

Em resposta, o general Augusto Heleno, que já havia ameaçado o STF para que Lula fosse mantido preso, disse que "tem que estudar como fazer". Isso sem mencionar, claro, os inúmeros tuítes de assessores e blogueiros governistas.

Fato é que, até aqui, parte muito significativa da imprensa brasileira vinha tratando o governo Bolsonaro e a gestão Paulo Guedes como se fossem distintos.

Um editorial da Folha – veículo bastante crítico ao governo e constantemente atacado por ele – intitulado "Na direção correta" rasgou elogios à agenda de reformas tocadas pela equipe econômica.

Em que pese o pressuposto de que a independência de um veículo é justamente o que o permite avaliar com sobriedade bons e maus aspectos de um governo – e, claro, o direito que a Folha tem de achar o que quiser sobre Bolsonaro –, é um erro acreditar que as agendas autoritária e econômica estão separadas nesse mandato.

Embora seja verdadeiro que, até aqui, Paulo Guedes tenha se mantido alheio a toda essa discussão sobre golpes, existem pelo menos duas evidências bastante razoáveis para acreditar que o ministro da Economia tenha embarcado no governo não apesar do espírito antidemocrático do bolsonarismo, mas justamente por causa dele.

A primeira delas é que Guedes nunca escondeu de ninguém sua admiração pelo laboratório chileno de liberalismo, que, às custas de 40 mil presos, torturados, mortos e desaparecidos, enfiou goela abaixo da população uma agenda de desproteção social e concentração de renda.

Milton Friedman e Friedrich von Hayek, referências intelectuais dessa agenda, teceram elogios públicos à ditadura de Pinochet. Hayek chegou a dizer que preferia uma "ditadura liberal em vez de um governo democrático sem liberalismo" e que não havia encontrado "uma única pessoa no Chile que não concordasse que a liberdade individual era muito maior sob Pinochet do que sob Allende".

Segundo – e não menos importante –, as convicções iliberais de Bolsonaro são ainda mais explícitas. Já se tornou repetitivo lembrar todas as declarações do atual presidente ao longo das três décadas de vida pública sobre as ditaduras militares latino-americanas.

Ao contrário do que foi previsto, Bolsonaro não se moderou durante a campanha e, pior, foi subindo o tom à medida que se aproximavam as eleições.

Faltando poucos dias pro segundo turno, falou abertamente em fechar o maior jornal do país e em prender e executar adversários políticos.

Uma vez no governo, Bolsonaro se cercou de paranoicos conspiracionistas que veem comunismo até em propaganda de batatinhas e que, nem tão aos poucos assim, foram estabelecendo como o novo normal da política brasileira discutir se amanhã pode haver um novo golpe.

Ainda ontem, o presidente ameaçou manifestantes que ainda nem existem com o excludente de ilicitude da Garantia da Lei e da Ordem. A ideia parece ser a de ir empurrando a agenda até que ela seja completamente incorporada pelo cotidiano.

Assim: o brasileiro acorda, toma um café e sabe que vai ler no jornal mais alguém do governo cogitando ditadura.

Guedes diz que não é para se assustar caso alguém peça por AI-5. Justo. Porque realmente ficou difícil se assustar com alguma coisa no Brasil depois que um parlamentar medíocre fez fama e até foi eleito presidente ameaçando prender, torturar e fuzilar opositores, justamente como fez o AI-5.

Até aqui, Paulo Guedes parecia se conformar com um importante paradigma do novo capitalismo chamado por Isabelle Stengers e Philippe Pignarre de "alternativas infernais".

Ela basicamente consiste em tirar do universo de possibilidades dos indivíduos a escolha entre diferentes caminhos a seguir porque joga fumaça sobre a discussão da premissa de um determinado problema.

E, nesse sentido, a escolha já não existe porque a alternativa de uma determinada solução acaba sendo, necessariamente, a catástrofe.

O filósofo Rodrigo Nunes usa a metáfora de um assalto para pensar o que seria, afinal, essa alternativa infernal: "ou a bolsa ou a vida".

No Brasil, ela tem atravessado governos de distintas orientações e aparecido em disputas como "ou Belo Monte ou o subdesenvolvimento"; "ou a precarização ou o desemprego"; "ou as queimadas na Amazônia ou o atraso".

Mas, para o bolsonarismo e Paulo Guedes, as alternativas infernais já não são mais o suficiente. Ou, pelo menos, as que já estavam postas. Agora são as mesmas que as dos anos 1960: ou a submissão ou o golpe.

Não basta a vitória dessa disputa no campo da retórica porque, como demonstram os protestos no Chile, ela pode ter prazo de validade. Não é todo mundo que tem paciência.

E é justamente por isso que o governo está tão obcecado com o Chile – mesmo a realidade brasileira sendo distinta sob muitos aspectos.

Então, por via das dúvidas, é melhor já ir se acostumando com a possibilidade de uma ditadura mesmo.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural e mestre em Cultura e Sociedade. É também pesquisador das novas direitas, professor, escritor e palestrante.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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