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Entendendo Bolsonaro

Ataques à jornalista da Folha são raio-x do bolsonarismo nas redes

Entendendo Bolsonaro

12/02/2020 10h46

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) é um dos principais impulsionadores das 'trollagens' nas redes bolsonaristas (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

[RESUMO] Patrícia Campos Mello foi ofendida durante sessão da CPMI das fake news. A Folha desmentiu rapidamente. Mas não adianta fact-checking, não adianta argumento. É um universo paralelo que invade o real na base do grito.

*Murilo Cleto

Ontem, durante sessão da CPMI das Fake News no Senado, um ex-funcionário da Yacows, uma empresa de marketing digital, usou o espaço que tinha como depoente para insultar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. Às vésperas da eleição, Patrícia havia assinado uma reportagem na Folha que denunciava a prática de disparos em massa sem a devida prestação de contas à justiça eleitoral.

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Baseado na publicação, o Congresso Nacional abriu uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para averiguar o caso e, desde o ano passado, tem ouvido eventuais colaboradores ou testemunhas.

Hans River do Nascimento disse que a repórter teria se insinuado sexualmente para conseguir uma declaração à matéria da Folha que, em dezembro passado, mostrou que a Yacows havia usado o CPF de idosos para cadastrar chips de celular que efetuariam disparos favoráveis à campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018.

Hans foi rapidamente desmentido pelo jornal: prints e áudios demonstram que o contato entre os dois foi estritamente profissional.

Mas não adiantou absolutamente nada. Rapidamente o exército bolsonarista nas redes passou a reverberar as acusações, mesmo diante do ineficaz exercício de fact-checking. E mesmo sabendo, também, que mentir à CPMI constitui crime, assim como a difamação (originária ou replicada) não pode ser defendida nem com a exceção da verdade – recurso que, em caso de calúnia, pode, através de várias especificações, escusar quem acusa.

Enquanto a fila de candidatos ao Bolsa Família chega a um milhão de brasileiros, algumas das principais autoridades políticas do país estão brincando de assassinar reputação como se estivessem jogando uma bolinha de papel na cabeça do colega nerd na fileira da frente.

Como disse João Filho, articulista do The Intercept Brasil, os bolsonaristas fingiram que nada aconteceu e continuaram cantando vitória. A vitória, no caso, é a desmoralização da jornalista e do jornal que têm sido implacáveis na cobertura da trajetória pública de Jair Bolsonaro.

Tem sido assim pelo menos desde que a Folha publicou reportagens demonstrando que Bolsonaro havia empregado funcionários fantasmas em seu gabinete; utilizado auxílio-moradia para manter apartamento funcional, mesmo tendo residência própria; mantido relações pessoais e profissionais com milicianos; etc.

Está claro para qualquer um que, neste caso, a vitória não é bolsonarista. Não há nada que subsidie as declarações de Hans. Mas a questão é que, no interior da gramática bolsonarista nas redes, não importa.

Porque a atuação dos bolsonaristas na internet em muito se assemelha à de uma criança mimada que, derrotada, inventa uma regra depois do apito final para sair celebrando e, diante de qualquer reação negativa, sobe o tom da comemoração. Não adianta fact-checking, não adianta argumento. É um universo paralelo que invade o real na base do grito.

Trata-se de um comportamento flagrantemente cínico, tomando o cinismo aqui como uma operação estética que reage a toda ação do interlocutor com desdém, frequentemente operando num jogo mental que nebuliza de propósito a fronteira entre a agressividade e a zoeira da atividade troll.

Quer dizer, o bolsonarista das redes sabe que age errado ao reproduzir acusações infundadas sobre a conduta profissional de uma jornalista internacionalmente premiada. Ele está agindo errado, sabe que está agindo errado, mas passou tanto tempo desmoralizando o interlocutor que essa soa como a única forma de agir diante dele.

Enquanto isso, inúmeras montagens mequetrefes da jornalista circulam pelas redes bolsonaristas de contato. Hoje é com a Patrícia, mas amanhã pode e vai ser com qualquer um que ousar se colocar no caminho do projeto absolutista de poder da extrema-direita.

E, verdade seja dita, não só a extrema-direita brasileira. Num artigo para a Ilustríssima, comentando o caso da demissão de Roberto Alvim – secretário da Cultura que foi flagrado plagiando o nazista Goebbels –, o filósofo Rodrigo Nunes mostrou como esse exército troll bolsonarista copia práticas da alt-right nos Estados Unidos e vem conseguindo, através desse modus operandi, intimidar opositores e se estabelecer no debate público – que não é público e muito menos debate.

Quando a prática chega a ameaçar a existência do grupo, a estratégia é acionar o safe button do "isso não passou de uma brincadeira, seus politicamente corretos" ou, como houve com Alvim, desligar quem passou dos limites. O problema é que para cada teto se descobre um novo sótão. E para cada fundo do poço se abre um novo porão.

Enquanto a fila de candidatos ao Bolsa Família chega a um milhão de brasileiros – que inacreditavelmente são mais uma vez rondados pela extrema pobreza –, algumas das principais autoridades políticas do país estão brincando de assassinar reputação como se estivessem jogando uma bolinha de papel na cabeça do colega nerd na fileira da frente.

O novo normal do militante político brasileiro à direita é esse candidato a bully que, diante da resposta malcriada de um adolescente advertido pelo professor, só consegue gritar "nóóóóhh". Não tem como isso acabar bem.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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