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Entendendo Bolsonaro

Caso Adriano: Bolsonaro disputa conspirações para sobreviver politicamente

Entendendo Bolsonaro

19/02/2020 01h57

(Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil)

[RESUMO] Em circunstâncias normais, um presidente rejeitaria ilações e se limitaria ao silêncio ou a legitimar os órgãos que elucidam o caso. Mas esse não é o Brasil de 2020. Num gesto de defesa pessoal, Bolsonaro busca investir em conspirações que lhe favoreçam politicamente em meio às hipóteses sobre a morte de Adriano da Nóbrega. O objetivo é assumir o controle da narrativa, ainda que, para isso, desacredite – ainda mais – as instituições da República.

*Murilo Cleto

As circunstâncias da morte de Adriano da Nóbrega ainda são bastante nebulosas. Desde que a operação policial que o vitimou veio à tona, ganhou corpo a suspeita de que o miliciano foragido teria sido alvo de uma queima de arquivo, já que Adriano teria muito a revelar tanto sobre o suposto esquema de "rachadinha" no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro quanto sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco.

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O ex-capitão do Bope tinha laços sólidos com a família do presidente: em 2003, Adriano recebeu uma moção de louvor de Flávio Bolsonaro; dois anos depois, já preso pela morte de um guardador de carros, foi novamente homenageado pelo "01", agora com a Medalha Tiradentes – a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; nesse mesmo ano, o próprio Jair Bolsonaro usou a tribuna do Congresso Nacional para defendê-lo da condenação; e a mãe e a ex-mulher de Adriano foram funcionárias do gabinete de Flávio, de onde arrecadaram mais de 1 milhão de reais, de acordo com o MP-RJ, sem aparecer para trabalhar.

Quem operava o esquema de devolução de parte desses salários ao parlamentar, ainda segundo o Ministério Público, seria Fabrício Queiróz, amigo e sócio oculto de Adriano. Fabrício, que também foi PM, virou notícia desde que os relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf, hoje UIF) detectaram movimentações atípicas e incompatíveis com o salário do assessor parlamentar, como o depósito de 24 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro, agora primeira-dama.

Assustado com a repercussão das investigações, Flávio Bolsonaro reagiu com prudência: "Não posso ser responsabilizado por atos que desconheço, só agora revelados com informações desse órgão", disse sobre o esquema.

Sobre as homenagens a Adriano, em evidência sobretudo desde a deflagração da operação "Os Intocáveis" – que teve como objetivo prender a atuação de milicianos em grilagem de terra, agiotagem e pagamento de propina em Rio das Pedras e na Muzema –, o filho do presidente disse em maio passado: "Resolvi abraçar aquela causa. Até homenageei ele depois como forma de mostrar que acreditava na palavra dele. Ele, agora, está sendo acusado de um monte de coisa. Se ele estiver errado, que a lei pese sobre ele. Como exigir de mim saber de algo que 15 anos depois veio à tona?".

Jair Bolsonaro, por outro lado, sempre foi mais incisivo, bancando a inocência de Adriano até depois de morto. Uma nota publicada nas redes sociais do presidente no dia 15 fala explicitamente em "execução" para se referir à ação da PM baiana e ressalta não haver nenhuma sentença condenatória transitada em julgado em seu desfavor.

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— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) February 16, 2020

A declaração vai na contramão de tudo que Bolsonaro sempre se orgulhou em defender em todos os seus 30 anos de vida pública, inclusive na própria nota, que chama Lula de "presidiário" e "bandido" – ainda que sobre o ex-presidente também não pese nenhuma sentença condenatória definitiva.

Em 2003, em um discurso na tribuna, o então deputado Bolsonaro militou pela migração de grupos de extermínio da Bahia para o Rio de Janeiro. Cinco anos depois, defendeu milicianos cariocas de um relatório de CPI que pela primeira vez desnudou a relação desses grupos com crimes que iam da oferta de serviços clandestinos a execuções. "Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet, com venda de gás. Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet, venda de gás ou transporte alternativo", disse na ocasião. Alguns meses antes de ser eleito presidente, o capitão reformado disse à rádio Jovem Pan que as regiões dominadas pela milícia são livres da violência.

Bolsonaro está parcialmente correto. Um levantamento dos repórteres Igor Mello e Lola Ferreira, no UOL, revela que somente 3% dos tiroteios decorrentes de operações policiais no Rio acontecem em áreas dominadas pela milícia. Isso evidentemente não significa que nessas regiões o tráfico de drogas – principal álibi para esses confrontos e para os índices alarmantes de mortes de civis inocentes em sua decorrência – não exista, mas que nelas a oferta de serviços, a distribuição de drogas, a segurança e a violência são praticamente monopólio de agentes que contam com a conivência de parte da estrutura administrativa do Estado.

Como ressalta o sociólogo José Claudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de "Dos barões ao extermínio: uma história da violência na baixada fluminense", a origem das milícias remonta aos anos 1960, quando, com o apoio da ditadura e o financiamento de empresários locais, policiais militares e demais agentes de segurança passaram a atuar como matadores de aluguel no Rio.

As milícias são, segundo Alves, uma fase desses grupos de extermínio, que foram se adaptando às novas realidades desde a redemocratização do país. Nos anos 1990, por exemplo, muitos se imiscuíram na gestão pública se candidatando a cargos eletivos. Então, mais do que preencher a ausência do Estado, o que fazem as milícias é atuar como uma continuação dele. Essa fronteira borrada entre o legal e o ilegal contribuiu imensamente para a série de mortes associadas a Adriano da Nóbrega sem solução.

A percepção sobre as milícias só vai sofrer um forte abalo perante a opinião pública em 2008, quando a CPI presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo é responsável por indiciar 226 pessoas, revelando as entranhas do esquema, e três jornalistas do jornal O Dia são sequestrados e torturados na favela do Batan, na Zona Oeste do Rio.

A atuação na CPI rendeu a Freixo ameaças que até hoje obrigam o parlamentar a andar com escolta policial. E não se exclui a hipótese de que o assassinato de Marielle Franco, ex-assessora de Freixo, tenha sido motivado também por esse marco.

Mesmo que o crime ainda não esteja totalmente solucionado, as investigações da Polícia Civil já concluíram que os autores são milicianos com interesses diretos sobre a comunidade de Rio das Pedras, área controlada pelo Escritório do Crime, como é chamada a milícia chefiada, segundo o MP-RJ, por Adriano.

Em linhas gerais, esse é o elo que liga Bolsonaro às milícias cariocas. Isso evidentemente não o implica no assassinato de Marielle, mas a ligação existe. E foi Bolsonaro quem sempre fez questão de destacá-la. Não se trata de uma teoria, mas de um fato.

Das condenações em decorrência da CPI aos dias de hoje, as milícias voltaram a atuar mais nas sombras. Foi Bolsonaro quem requentou sua retórica capanguista em programas de auditório e redes sociais.

Teorias da conspiração não são descartáveis a priori. A carga do termo é majoritariamente negativa, mas o fato é que conspirações não apenas existem como a política é frequentemente atravessada por elas. Com a emergência das redes sociais online, as teorias da conspiração foram ficando a cada dia mais rebuscadas e, no limite, bizarras.

O próprio governo Bolsonaro é resultado, em partes, de teorias disseminadas em torno da destruição de valores familiares e outras paranoias da extrema direita contemporânea. Hoje a Funarte é dirigida por um homem que diz que o rock leva ao aborto e ao satanismo. Um dos principais veículos bolsonaristas de comunicação, amplamente recomendado pelo próprio presidente, filhos e ministros de Estado é o blog de um jornalista que diz que a masturbação mata neurônios. Não é no plano racional que o bolsonarismo joga em casa.

Poucos dias após a morte de Adriano, uma batalha de versões tomou conta do noticiário. O miliciano reagiu ao se deparar com os agentes e acabou sendo morto durante a troca de tiros, diz a polícia baiana exibindo marcas nos escudos. Um tiro no pescoço e outro no tórax atingiram o ex-capitão.

Para consultores especialistas em intervenções policiais, no entanto, a invasão ao sítio em que Adriano se escondia – propriedade de um vereador do PSL – não se justifica, já que o ambiente estava todo cercado e não havia reféns. Ao todo, 70 homens participavam da operação.

O sangue borrifado a uma altura baixa na parede, a trilha de sangue no chão e as gotas de sangue em uma só direção são indícios de que Adriano estava deitado quando foi alvejado. As fotos que a revista Veja divulgou também indicam que os disparos foram realizados a uma curta distância e que o ex-capitão pode ter sido alvo de pelo menos uma coronhada.

Essas evidências não aparecem no relatório da perícia e o Departamento de Polícia Técnica se limitou a negar as contradições aparentes. Somente um dos projéteis que atravessaram o corpo de Adriano foi encontrado e, apesar de ter sido levado ao hospital porque aparentava estar vivo, segundo os policiais, um legista ouvido pela revista piauí afirma que a morte só pode ter sido instantânea.

Vizinhos do sítio também afirmaram à piauí que houve um intervalo muito grande entre as sequências de disparos, o que poderia indicar uma simulação de revide. O mais grave: curiosos e jornalistas circularam pelo local por cinco dias após a operação. Jornalistas da Veja foram detidos enquanto tentavam localizar Leandro Guimarães, fazendeiro ligado a Nóbrega que pode servir de testemunha-chave. Neste momento, um imbróglio judicial impede o enterro.

Em circunstâncias normais de uma democracia saudável, o presidente da República se limitaria ao silêncio ou, quando muito, a legitimar os órgãos que neste momento elucidam o caso. Mas esse não é o Brasil de 2020. Jair Bolsonaro sabe das teorias que neste momento circulam sobre a morte de Adriano da Nóbrega. Nenhuma delas é boa para o governo, que, a despeito do histórico de seus representantes, quer se ver distante de matadores de aluguel.

Ao contrário do que se poderia esperar, em vez de rechaçar teorias da conspiração em nome de alguma força estabilizadora, o presidente pega carona nelas para tentar assumir o seu controle e tentar mudá-las de direção.

Bolsonaro perguntou nessa terça (18) "a quem interessa não haver uma perícia independente" e agora se sua "possível execução" foi "queima de arquivo". Seu filho Flávio foi além e divulgou um vídeo do cadáver para levantar suspeitas. Para o capitão reformado, "os verdadeiros criminosos continuam livres até para acusar inocentes no caso Marielle".

Ele sugere, por fim, que alguém poderia forjar mensagens e diz que tomou providências para que uma "perícia independente" seja realizada, mesmo que isso implique uma violação explícita dos limites de suas atribuições institucionais. Ainda na tarde de ontem (18), a Justiça acatou um pedido do MP-BA para realização de um novo exame no corpo.

Mesmo que existam boas razões para desconfiar das conclusões apresentadas pela polícia baiana – algumas delas listadas aqui –, Bolsonaro aparentemente se dispõe a esse papel por duas razões. A primeira delas é manter a atividade performática antiestablishment que o trouxe até aqui, atacando instituições e alimentando o antipetismo mais visceral.

A segunda é ainda mais delicada: blindar-se da eventual implicação de alguém próximo no caso Marielle, embora Adriano da Nóbrega não figure exatamente como suspeito do crime. A ideia é repetir o expediente utilizado contra jornalistas, utilizando a tática do envenenamento do poço. Se algo aparecer, ele pode dizer: "Tá vendo? Eu avisei". Seja como for, são péssimos sintomas de uma democracia cuja realidade já consegue ser muito pior do que as teorias que sobre ela fantasiam.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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