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Entendendo Bolsonaro

"Raça em extinção": os riscos do jornalismo, num discurso de formatura

Entendendo Bolsonaro

04/03/2020 14h27

O presidente Jair Bolsonaro faz o gesto da 'banana' a jornalistas, na entrada do Palácio do Planalto (Crédito: Mateus Maia/Poder360).

[RESUMO] Os recentes ataques de caráter misógino proferidos por uma aliança entre o presidente da República, parlamentares e milícias virtuais contra jornalistas mulheres emitem um sinal de alerta sem precedentes para o exercício da profissão no Brasil de 2020. Em meio a um ambiente cada vez mais hostil à liberdade de imprensa, e sob um espírito do tempo que encoraja agressões a liberdades individuais, o fazer jornalístico encontra-se em enorme risco, justamente quando nunca foi tão necessário. Diante desse delicado momento, Giovanna Galvani, 23, oradora do curso de jornalismo, turma de 2019, na formatura da Faculdade Cásper Líbero, discursou aos presentes à cerimônia de colação de grau da instituição e expressou como se sentem as novas gerações de jornalistas que iniciam carreira neste cenário. Abaixo, o blog reproduz, em forma de artigo, o seu discurso.

* Giovanna Galvani

Devo começar dizendo que é estranho estar nessa posição de agora. Sou uma quase-jornalista que, olhando pra vocês, fica imaginando quantos não xingaram um jornalista nos últimos tempos.

Mas calma, fiquem sentados, a gente vai conversar. É um momento de vitória pra nós, e também para vocês. Depois de quatro anos, três presidentes, um processo de impeachment e a eleição de quem nos considera uma raça em extinção, eu acho louvável que todos estejamos aqui com a cabeça no pescoço. Ainda.

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Vocês devem saber que jornalista é chato, pois convivem com ao menos um deles. Pois bem, parte disso nos é ensinado nas salas de aula, onde pudemos encontrar profissionais incríveis que nos acompanharam do primeiro ao último dia.

Nossos professores nos guiaram e nos forneceram substância, forma, conteúdo, edição, debate, raiva, risadas… um pouco de sono, também, nos desculpem por isso.

Mas teve uma coisa que eles não nos deram: um manual de doutrinação marxista esquerdista que muita gente acha que jornalista tem, e que o professor leva debaixo do braço. Acho que tá em falta, na Biblioteca da Cásper (Líbero) não tem. Quem tiver um contato, favor falar com o setor administrativo da Fundação. Aos nossos mestres, o meu muitíssimo obrigada.

Vamos continuar conversando. Queria contar sobre um outro lado do que aprendemos na faculdade, que esteve essencialmente ligado aos momentos que a gente deveria estar na aula, mas não estava.

A Avenida Paulista é um lugar que berra qualquer sintoma político, econômico e social do país. Em 2016, entramos nessa graduação sem imaginar o tanto de conteúdos que teríamos que surrupiar dos nossos professores para discutirmos crises, saídas e soluções.

Mas quem iria dizer que, em 2020, a nossa profissão seria alvo de ataques cada vez mais graves? Eu tive até que parar para rever esse discurso algumas vezes nas últimas semanas. Quem iria imaginar que a jornalista Patrícia Campos Mello, uma das referências absolutas da nossa profissão, seria alvo de insultos machistas de quem senta no Palácio do Planalto?

É justo pensarmos em seguir na carreira de jornalismo e temermos que nosso familiares – vocês – sejam envolvidos em jogos criminosos de exposição nas redes sociais? Porque foi isso o que fizeram com a Vera Magalhães na semana passada.

Já perdemos as contas de quantas declarações atravessadas e cheias de ironia o nosso presidente deu sobre a imprensa. Poderíamos conversar horas sobre a democracia e eu tenho certeza que muitos aqui gostariam desse debate, enquanto outros já devem estar me ironizando ao familiar logo ao lado, mas precisamos nos perguntar se a democracia sólida é apenas um jogo que precisamos reaprender a jogar a cada semana.

E esse não é um debate fácil também por outro motivo: as posições nesse tabuleiro estão longe de serem as mais afetadas.

Na faculdade, muitos de nós aprendemos sobre a importância de sermos quem somos, e sobre como isso já é muito. Para cada um dos meus amigos que saíram do armário e jogaram a chave do cadeado fora ao longo desses quatro anos, queria dizer que eu só sinto orgulho de vocês.

Às mulheres que se unem na Frente Feminista Casperiana Lisandra (coletivo organizado por alunas da instituição) para debater sobre direitos plenos sobre os nossos corpos, eu só sinto alegria de ter trilhado esse caminho com vocês. Aos meus colegas da Africásper, obrigada por escancararem dados e mostrarem vivências que deverão gerar mudanças diárias na faculdade. Igualdade não é moeda de troca, é um direito.

Muitos de nós enveredamos para outras áreas além do jornalismo mais tradicional, seja por escolha ou por mercado, mas nós estudamos durante esses quatro anos para sermos desconfiados mesmo – não, o incômodo no almoço de domingo não é exclusivo da sua família. De forma alguma, isso é algo ruim. Nós também ouvimos e aprendemos, sempre.

Uma vez, minha avó, nordestina e ex-doméstica – mas daquelas que não foram à Disney – , me disse que tinha tanta vontade de comer uma maçã na casa das patroas que chegava a sonhar com isso. Quando vou fazer uma reportagem, eu me lembro dela e peço licença para contar uma história sobre uma realidade que não é a minha, mas que diz sobre um país bem maior e com muito mais a dizer do que contam Messias salvadores.

Precisamos de mais realidades porque nosso trabalho é verificar o que é verdade. No nosso país, sofrer com desemprego é uma verdade. Não ter água encanada e esgoto é uma verdade. Violência doméstica é uma verdade. Uma coisa está diretamente relacionada a outra porque, se os jornalistas não estão "extintos", eles estão sob grave ataque. Nós não somos mentirosos, não somos canalhas, não queremos o "fim da família" ou a destruição do país. Queremos ouvir e relatar.

A imprensa não é um elemento à parte da sociedade; ela se move junto com as pessoas e pelas pessoas. Eu espero que vocês se lembrem dos seus amados formandos quando virem quem está na frente dos fatos, relatando-os.

Aos meus colegas, é uma honra estarmos passando por toda essa tempestade juntos. Atuando no jornalismo ou fora dele, eu confio que todos vocês defendam a democracia como algo que não pode ser dado a prazo ou em parcelas: é tudo, e nunca nada.

Seguimos juntos, atentos e fortes.

* Giovanna Galvani é repórter da CartaCapital e cobre política, gênero e meio ambiente para o site da revista.

* Segundo relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o número de casos de violência contra veículos de comunicação e jornalistas subiu 54,07% entre 2018 e 2019, sendo registrados 208 casos contra 135 no período de comparação.

* Segundo números de 2019, divulgados pelo Ministério da Saúde, o Brasil registra, em média, um caso de agressão a mulher a cada quatro minutos.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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Uma discussão serena e baseada em evidências sobre a ascensão da extrema direita no mundo.