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Bolsonaro nos EUA: Apoio a Guaidó aprofunda crise Brasil-Venezuela

Entendendo Bolsonaro

09/03/2020 22h59

No último sábado (7), Bolsonaro e Trump jantaram em residência particular do presidente americano (Crédito: Jim Watson/AFP)

* Cesar Calejon

A viagem de Jair Bolsonaro aos EUA de Donald Trump chegará ao fim, nesta terça (10), com novos sinais de aumento da tensão diplomática entre Brasil e Venezuela.

Após reunir-se com o presidente americano na noite do último sábado (7), cumprindo o principal evento de sua quarta viagem ao país, Bolsonaro, em nota conjunta com Trump, reforçou o apoio brasileiro a Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela.

Já nesta segunda (9),o presidente brasileiro se reuniu com os senadores republicanos Marco Rubio e Rick Scott. O último deles, é bom lembrar, já revelou considerar abertamente uma ação militar na Venezuela, estratégia que faz brilhar os olhos do núcleo ideológico bolsonarista, representado, sobretudo, pelo deputado Eduardo Bolsonaro, que está presente à viagem.

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Esses episódios, somados a recentes investidas, como a da última quinta (5), em que o Itamaraty abriu caminho para expulsar 17 funcionários venezuelanos de postos diplomáticos no Brasil, caracterizam um momento crítico para a relação Brasil-Venezuela, com crescentes possibilidades de um conflito (econômico e possivelmente militar) sem precedente entre os dois países.

O cenário é consequência natural de uma narrativa bolsonarista que, desde a campanha presidencial, agride a nação venezuelana, alimentando fantasmas conspiratórios e encorajando a xenofobia num Brasil que, nos últimos sete anos, recebeu pedidos de refúgio ou residência por mais de 250 mil cidadãos venezuelanos.

A narrativa se ancora em visões factualmente equivocadas, como mostra a pesquisa, "A economia de Roraima e o fluxo venezuelano: evidências e subsídios para políticas públicas", ao ilustrar a recente experiência de Roraima: segundo a pesquisa, o estado registrou indicadores positivos de atividade econômica e diversificação no período de intensificação dos fluxos venezuelanos.

A Venezuela chegou a ser um dos principais parceiros econômicos do Brasil e nós chegamos a superar a marca de US$ 5 bilhões de saldo positivo na balança comercial com os vizinhos venezuelanos. De acordo com dados do Ministério da Economia, esse volume foi de R$ 5,13 bilhões, em 2008, para R$ 0,577, em 2018. Ou seja, hoje, o cenário é outro.

Ainda nesta segunda, um dia após a declaração conjunta de Trump e Bolsonaro, Nicolás Maduro ordenou o início de exercícios militares chamados "Escudo Bolivariano II 2020".

Há duas semanas, como reação a outro episódio de tensão entre os dois países, Maduro, em entrevista coletiva no Palácio Miraflores, em Caracas, já havia afirmado que o presidente brasileiro "está arrastando as Forças Militares do Brasil para um conflito armado contra a Venezuela, ao amparar um grupo de terroristas que atacou um quartel militar venezuelano".

O episódio em questão ocorreu no dia 22 de dezembro de 2019, quando um grupo de militares desertores do regime venezuelano assaltou uma base venezuelana na fronteira com o Brasil.

Contudo, esta briga não é brasileira. Há anos os Estados Unidos vêm fazendo a manutenção de embargos contra a Venezuela e sancionando as empresas da sociedade internacional que fazem negócios com o país, o que estrangula a economia de toda a região.

Métodos similares foram usados com Cuba durante a invasão da Baía dos Porcos, por exemplo, e embargos posteriores que seguem vigentes até a presente data. Ou com o Irã, por exemplo, que teve dois dos seus navios, o MV Bavand e o MV Termeh, desabastecidos por quase cinquenta dias no Porto de Paranaguá, no Paraná: a Petrobras negou-se a abastecer as embarcações, porque o governo iraniano também está sob sanções aplicadas pelos Estados Unidos.

No último dia 17 de fevereiro, a Venezuela denunciou os EUA no Tribunal Penal Internacional de Haia por crimes contra a humanidade considerando as sanções contra o governo de Nicolás Maduro, o que implica não somente na falta de petróleo ou combustíveis, mas, em última análise, no colapso social de toda a nação.

De acordo com a Resolução 2625 da ONU, que foi assinada em 1970, "Nenhum estado pode aplicar ou comentar o uso de medidas econômicas, políticas ou de qualquer índole para coagir outro estado a fim de subordinar o exercício dos seus direitos soberanos. Todo estado tem o direito inalienável de escolher o seu sistema político, econômico, social e cultural, sem a ingerência de nenhuma forma por parte de nenhum outro estado", afirma o texto da ONU. Qualquer sanção tem o objetivo evidente de desestabilizar o governo sancionado em detrimento dos milhões de civis que são diretamente afetados.

Rússia e China endossaram a posição venezuelana. Moscou anunciou que ampliará a cooperação econômica e militar com a Venezuela, que já possui ao menos vinte unidades do caça-bombardeiro russo Sukhoi Su-30, além de armamento antiaéreo e radares de tecnologia da Rússia. Também está sendo construída na Venezuela uma fábrica de rifles AK-47, arma que já é usada pela Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).

Outros setores venezuelanos, tais como energia, recursos naturais, indústria e agricultura também receberão mais investimentos do Kremlin, segundo Sergey Viktorovich Lavrov, chanceler russo. Todos os aspectos dessa nova cooperação serão elaborados durante a Comissão Intergovernamental de Alto Nível Rússia-Venezuela, que acontecerá em maio, na Rússia.

Após uma reunião com Maduro no Palácio de Miraflores, o chefe da diplomacia russa condenou "todo o tipo de chantagem", referindo-se às sanções impostas pelos EUA. "Somente o povo venezuelano tem o direito de decidir sobre o seu próprio futuro e o seu próprio destino. A Rússia fará o possível para apoiar esse processo", garantiu Lavrov.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Geng Shuang, também anunciou que Pequim vai manter as relações comerciais com a Venezuela. A posição foi oficializada após Eliott Abrams, enviado especial da Casa Branca, declarar que Washington estava adotando medidas para convencer os chineses a desistirem da cooperação com o governo Maduro.

Shuang enfatizou que a China oferecerá apoio irrestrito à soberania venezuelana e à legitimidade do governo do país. "[Vamos] permitir que os Estados Unidos fiquem cientes dos fatos, parem de abusar de sanções e outras medidas coercitivas e trabalhem com todas as partes para encontrar uma solução política para o problema venezuelano […] A cooperação entre China e Venezuela continuará a se desenvolver […] Somos contra qualquer interferência nos assuntos internos de outros países, assim como somos contra sanções unilaterais e jurisdição extraterritorial", concluiu o representante chinês.

Entendeu? Briga de cachorros grandes. A política externa bolsonarista precisa entender o tamanho do vespeiro venezuelano e agir de forma cirúrgica, extremamente cuidadosa e comedida, aplicando certa equidistância pragmática para defender os interesses brasileiros frente à sociedade internacional.

Ainda na semana passada, os Estados Unidos condenaram a prisão pela Venezuela do tio de Juan Guaidó: "Os Estados Unidos condenam com firmeza a prisão de Juan José Márquez e exigem a sua libertação imediata", disse o Departamento de Estado dos Estados Unidos em nota.

Exigir é um verbo utilizado quando existe ingerência sobre os assuntos de outro indivíduo ou nação. Seria impensável, por exemplo, imaginar o governo venezuelano exigindo que os Estados Unidos e a Inglaterra libertem o ativista Julian Assange.

Além disso e independentemente de perceber Nicolás Maduro como ditador ou como presidente de fato, declarar guerra sem o pressuposto da legítima defesa a um país vizinho, que sempre respeitou a soberania e a determinação do povo brasileiro, seria um erro absurdamente crasso.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).

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