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Entendendo Bolsonaro

Ao desafiar pandemia, voluntarismo bolsonarista rompe todos os limites

Entendendo Bolsonaro

16/03/2020 13h15

Manifestantes em protesto no dia 15 (Crédito: Saulo Angelo/Futura Press/Estadão Conteúdo)

* Murilo Cleto

Com o incentivo do presidente Jair Bolsonaro, simpatizantes do governo saíram às ruas em todo país ontem (15) para intimidar as instituições no Brasil. Os atos, como já se disse tantas vezes desde aqueles realizados em maio passado, são o modo como o bolsonarismo tenta resolver a contradição de ser situação e oposição ao mesmo tempo. Parece difícil, mas a nova extrema-direita precisa desse esforço para se justificar no poder.

Sobre os protestos do dia 15, veja também:

Nada de novo no front com os últimos protestos, certo? Errado. Nas redes bolsonaristas, desde a recomendação do próprio presidente na quinta (12) para que os atos fossem adiados em virtude da explosão de novos casos do coronavírus em algumas regiões do país, passaram a proliferar manifestações de uma espécie inédita de desobediência civil.

O termo parece um pouco contraditório para descrever pessoas que, em tese, agem pela ordem e pela disciplina, mas faz sentido quando se olha para a postura dessa extrema-direita não apenas organizada, mas de certa forma esculpida pela lógica de funcionamento das redes sociais digitais.

Como têm notado no caso brasileiro os filósofos Moysés Pinto Neto e Rodrigo Nunes, por exemplo, esse é um traço fundamental da postura do troll. Não qualquer troll, evidentemente, mas o politicamente engajado. Anos antes da eleição de Bolsonaro, já se multiplicavam páginas no Facebook com o nome do político associado aos termos "zuero" e/ou "opressor".

O esforço ajuda a justificar o grande engajamento da juventude, especialmente a masculina, em torno dessa modalidade de direita no país. Depois de algo como duas décadas e meia de uma nova carta constitucional bem ou mal elaborada sob princípios democráticos, defender ditadura virou coisa de rebelde.

Mas tem mais. Num artigo de julho de 2019 na revista piauí, o urbanista Roberto Andrés discorreu sobre o "duplipensar" bolsonarista a partir da relação dessa direita com o trânsito: "O bolsonarismo realiza assim a proeza de, sob o pretexto de atacar a suposta corrupção de uma suposta indústria da multa, liderar uma verdadeira cruzada a favor da contravenção no trânsito", diz no texto. De fato, uma proeza. E só possível graças à emersão política de um traço constitutivo da dinâmica social brasileira brilhantemente discutido pelo antropólogo Roberto DaMatta em "Fé em Deus e pé na tábua" (Rocco, 2010).

Embora também existam expressões populares e subalternas do tal "jeitinho brasileiro", ele pode ser entendido sobretudo como um reforço da hierarquia social que não condiciona os seus às leis universais que, por essa lógica, só devem orientar os demais. Daí a noção de "cidadão de bem". Em geral, o que distingue os "cidadãos de bem" dos que, por exclusão, são "cidadãos de mal", é a carta branca que os primeiros têm para, se preciso for, burlar as convenções sociais mais estabelecidas diante de uma estrutura profundamente corrupta.

Foi assim que Bolsonaro ganhou terreno. Cada gesto de desafio à ordem constituída, a cada dia mais desmoralizada muito graças ao aprofundamento da crise política, é uma declaração de coragem. De voluntarismo, portanto. E agir errado em tempos de desgraçamento institucional virou sinônimo quase certo de avanço na hierarquia bolsonarista. Às vezes pode dar errado, como houve com Alvim, mas quase sempre funciona. O importante é operar sempre no limite.

Pode parecer um pouco bizarro – e talvez seja mesmo – que alguns simpatizantes do governo Bolsonaro se sintam – e se vistam – como templários medievais. Mas é assim que eles encaram a adesão a esse projeto. Como se estivessem indo conquistar Jerusalém.

E é por isso que o atentado sofrido por Bolsonaro em Juiz de Fora sempre reaparece, envolto em contornos messiânicos, nessas iniciativas de pressão sobre as demais instituições. Porque é o elo perfeito que os bolsonaristas precisam para ligar o sacrifício pessoal voluntarista à perversidade do sistema, o que justificaria o avanço dos "cidadãos de bem" sobre ele.

Até aqui, esse esforço anti-establishment se limitou a ofender jornalistas e exigir o fechamento do Congresso e do STF – o que por si só já não é pouca coisa. Mas, como já se disse nesse espaço, a contradição desse governismo antissistema vai custando mais caro para a sociedade brasileira à medida que passa o tempo de mandato e os indicadores não melhoram. E o voluntarismo bolsonarista rompeu todos os limites ao desafiar dessa vez não o Legislativo, não o Judiciário, não os ativistas ambientais, não os professores de História, mas uma pandemia.

As redes bolsonaristas se entupiram, nos últimos dias, de manifestações heroicas de sacrifício pessoal em nome do bem comum. Numa live de influencers amplamente recomendados pelo presidente, falou-se que o coronavírus não é nada perto do que o 15/03 poderia trazer para o Brasil. "É belo e heroico ver pessoas – sabendo dos riscos – protestando em coletivo contra a maioria de congressistas chantagistas que sujam o Congresso Nacional", disse outro deles pelo Twitter, com quase 15 mil endossos em 9 horas.

Criticados pela irresponsabilidade das declarações, muitos se defenderam dizendo que os riscos foram voluntariamente corridos por quem quis ir às ruas. Como se o vírus escolhesse depois para quem seria transmitido.

Em que pesem as recomendações das autoridades sanitárias, incluindo o Ministério da Saúde – que tem realizado um trabalho informativo impecável quanto ao novo surto viral –, Bolsonaro, que esteve em contato com pelo menos 12 infectados nos últimos dias e deveria estar em quarentena, divulgou com entusiasmo imagens dos atos – incluindo uma que pede ditadura – e foi, ele próprio, cumprimentar simpatizantes que se aglomeravam para tocá-lo em Brasília.

Bolsonaro também disse, a exemplo do que fez poucas horas antes de ser submetido a um exame, que "a proibição de jogos de futebol parece histeria". Nos circuitos virtuais mais radicais e em diversos caminhões de som nas ruas durante as manifestações, choveram teorias das mais estapafúrdias de conspiração sobre quais seriam as reais origens do surto.

É uma guerra de trincheiras – para permanecer na metáfora do voluntarismo. Nesse episódio dos atos pró-governo, que desde a terça-feira de carnaval tem dado o que falar, o Brasil chegou ao ponto em que o endosso do presidente a uma imagem que clama por ditadura foi o seu gesto menos grave.

Começou não sendo nada; depois virou só algo a favor do Brasil – seja lá o que isso signifique – ; e, no fim, acabou sendo não apenas contra as instituições de freio e contrapeso, mas contra uma pandemia.

Representantes dos outros Poderes demonstraram irritação, mas não mais que isso. Quantas casas avançou a agenda antidemocrática? Qual será o próximo degrau dessa escalada voluntarista antissistema? E a que custo? As respostas vêm a galope. Com um templário em cima, claro.

* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

 

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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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