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Entendendo Bolsonaro

Eleito como Messias, Bolsonaro chega à Páscoa no papel de Pilatos

Entendendo Bolsonaro

06/04/2020 00h13

Evangélicos fazem orações em frente ao Palácio da Alvorada (Crédito: Pedro Ladeira/Folhapress)

Vinícius Rodrigues Vieira 

Goste-se ou não de Jair Bolsonaro, é preciso reconhecer que o atual presidente foi eleito em meio a uma aura mística. Sobrevivente a um atentado a faca durante a campanha de 2018, o inquilino do Planalto carrega "Messias" como nome do meio, indicando, para seus apoiadores mais fanáticos  mas não necessariamente religiosos — , uma espécie de predestinação para o cargo que ocupa.

Se Jesus — o Messias para os cristãos — veio ao mundo para nos redimir dos pecados, Jair foi eleito, segundo seus fãs mais aguerridos, para pôr ordem no país depois dos escândalos de corrupção e retrocesso moral-econômico da Nova República, cujo auge maléfico teria ocorrido, segundo o evangelho bolsonarista-olavista, durante os governos do PT (2003-2016).

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No último fim de semana da Quaresma — o período de 40 dias de reflexão que antecede a Páscoa e que inspira metáforas políticas — , Bolsonaro rasgou a fantasia de Messias e, ironicamente, lavou de vez as mãos, tal como Pôncio Pilatos — governador romano da Judeia há cerca de 2000 anos — o fez ao nada fazer para impedir a morte de Jesus.

Bolsonaro é Pilatos ao lavar as mãos e jogar no colo dos governadores o ônus político de tomar medidas extremas como o confinamento social contra a Covid-19, vigente em Estados como Rio de Janeiro e São Paulo. Enquanto isso, o presidente se dá ao luxo de se juntar a pastores imprudentes, tendo convocado, no último domingo (5), a nação para um dia de jejum contra a pandemia.

"Está escrito: 'Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'", disse Jesus segundo Mateus. Nos dias atuais, mais que ensinamento religioso — e sua validade não é aqui discutida — , essa frase ecoa a necessidade de colocar a vida acima do imediatismo.

Se na época de Cristo o Estado servia aos poderosos, já faz tempo que mesmo liberais reconhecem a necessidade de auxílio aos mais necessitados em situações como a que vivemos, análoga a uma guerra nos efeitos sobre nossas vidas. Bolsonaro, porém, vê a economia no "beleléu", mas descarta qualquer canetada para lidar com a situação.

Das mais belas metáforas que já ouvi de líderes religiosos sérios, a mais persuasiva é a que afirma que Jesus está nos pobres e desvalidos, perseguidos e difamados. Sendo assim, Cristo é, no Brasil contemporâneo, o morador de ruas, cortiços e favelas, além dos marginalizados resumidos na infame expressão três "pês" — representando pretos, pobres e prostitutas.

Na última ceia, realizada na quinta-feira, véspera da crucificação, Cristo foi profético e disse que um de seus doze apóstolos o trairia. Judas Iscariotes foi quem entregou seu líder aos romanos, ao beijá-lo no Gêtsemani — o jardim das oliveiras em Jerusalém — enquanto soldados se aproximavam.

Bolsonaro dá o beijo da morte no povo-Cristo ao ignorar os perigos da pandemia de Covid-19 e expor os brasileiros ao coronavírus. Nesse sentido, o presidente é mais Judas que Pilatos. De fato, na simbologia cristã, o primeiro é pior que o último, tanto que segue vilipendiado na tradição popular, sendo malhado anualmente, representado em bonecos com face de políticos vistos como párias.

Não tenho dúvidas de que, nesta Semana Santa atípica, com igrejas e templos fechados  caso o bom senso seja respeitado  , o rosto de Bolsonaro estará estampado em vários dos bonecos surrados país afora — ironicamente, numa afronta à quarentena que o presidente tanto repudia.

Para quem sonhava ser um Messias aclamado pelo povo tal como Jesus no Domingo de Ramos, em sua entrada triunfal em Jerusalém, o presidente flerta com um fim triste. Se Judas se arrependeu de trair Jesus por 30 moedas de prata e tirou a própria vida, Bolsonaro arrisca-se a condenar parte do povo à morte por 30 dias a menos de quarentena e, assim, compromete a legitimidade de seu governo, hoje sustentado por outra tríade de pês que não os marginalizados — pastores picaretas, párias políticos e proprietários improdutivos.

Ao longo do tempo, as palavras ganham significados que fogem a sua origem. Hoje, Gêtsemani é nome de cemitério particular em São Paulo. Aos pobres, caberá ter uma parte no latifúndio de ideias improdutivas em que o Brasil dominado por Olavo de Carvalho se transformou. Essa fração corresponde às covas rasas de necrópoles como a de Vila Formosa, o maior cemitério da América Latina e cujas sepulturas em preparação, abertas em terra nua, correram o mundo na foto principal da capa do Washington Post de quinta-feira passada (2 de abril).

O Messias embutido no nome de Jair Bolsonaro esvai-se de traição em traição. A questão é saber por quanto tempo o povo continuará a ser Pilatos de si, lavando as mãos para sua própria crucificação, quiçá à espera de uma Páscoa que, se existe, não é deste mundo, tal como o Messias das escrituras. O desgoverno de Bolsonaro e a pandemia que o expôs de vez são, porém, assaz profanos para serem resolvidos com preces e orações.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV

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