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Entendendo Bolsonaro

Desinformação permanece maior obstáculo na luta contra a Covid-19

Entendendo Bolsonaro

06/05/2020 22h06

Um trabalhador, vestindo roupas de proteção, prepara caixões em meio ao surto da Covid-19, em Manaus. (Crédito: Bruno Kelly/Reuters)

* Cesar Calejon 

Com índices de isolamento social em queda em meio à escalada de mortes e enquanto se torna um dos epicentros mundiais da Covid-19: este é o cenário preocupante que vive o Brasil na sua luta diária contra a pandemia que, em todo o mundo, já contaminou cerca de 3,7 milhões de pessoas, causando 263 mil mortes.

Na semana em que o País tornou-se o 6º do ranking mundial de óbitos em decorrência do novo coronavírus – são 8.536 mortos após atualização do Ministério da Saúde na última quarta (6) – , o blog conversou com Fernando Salvetti Valente, médico assistente do Pronto Socorro de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), unidade que é parte da linha de frente da estrutura de saúde pública paulista na guerra contra a pandemia e que, hoje, opera perto do limite da sua capacidade de atendimento.

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Para Valente, a rede de desinformação estruturada em torno de mídias sociais e encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro é hoje um obstáculo crucial na luta para manter as pessoas em casa, considerando os baixos níveis de isolamento que permanecem a esticar o pico da doença no Brasil.

Ao longo das últimas seis semanas, ele relata que tratou de "vários" brasileiros que perderam a vida para a Covid-19. "Um paciente, por exemplo, que foi cuidado pelo mesmo (médico) residente por três dias (seguidos), me causou uma impressão forte. Quando ele faleceu, o residente ficou muito emocionado. Toda a equipe, mas aquele médico, em especial, teve mais contato com aquela pessoa e ficou bastante sentido com a perda", relembra.

Segundo ele, a Covid-19 afeta significativamente as relações entre as equipes médicas e os pacientes. "Em certa medida, a doença tira o que eu – enquanto médico – valorizo muito: o contato mais próximo, o olhar no olho, aquele toque acolhedor. (…) No caso desse paciente, eu creio que ele identificou e reconheceu aquele profissional como o médico dele até o momento final. Para mim, a aprendizagem neste caso foi entender que, mesmo em meio às calamidades, a nossa humanidade deve ser fortalecida, porque nós vamos precisar muito dela", ressalta.

O Dr. Valente destacou a sua preocupação com a atuação do presidente Bolsonaro, a qual, segundo ele, "atrapalha bastante" os trabalhos das equipes de saúde. Sobre o enigma que permanece ao redor dos exames do presidente, Valente ressalta que trata-se de um caso preocupante, dentro de um contexto de enorme desinformação estimulada pelo chefe de Estado brasileiro.

"Ele (Bolsonaro) fez um exame no dia 12 e outro no dia 17 de março. Entre essas datas, no dia 15, ele foi a uma manifestação. Caso seja comprovado que ele estava contaminado nesta ocasião, existe um estudo do Estadão (jornal O Estado de São Paulo) que demonstrou que ele tocou em 272 pessoas somente neste dia."

"Caso ele realmente teste positivo (para Covid-19)", prossegue o médico, "trata-se de um ato ainda pior do que a desinformação conduzida por esta gestão federal. Contaminar outros seres humanos de forma deliberada é simplesmente desumano e inescrupuloso (…) além disso, com toda a ansiedade (das pessoas durante a pandemia), essas falas que desqualificam ou negam a ciência e oferecem soluções mágicas ganham mais ressonância. Isso é muito perigoso", enfatiza.

O médico chamou atenção para o continuado prolongamento do pico da pandemia, resultado do não cumprimento das medidas de isolamento social, situação que já leva diferentes estados e municípios brasileiros a entrarem em lockdown.

"Os dados científicos de casos e de mortes estão aumentando. Falar em abertura, enquanto existe a ascensão dos casos, não é correto. Não é o momento. Vamos correr um risco muito grande. Outros países que optaram por este caminho pagaram um preço altíssimo e tiveram que retomar o fechamento posteriormente. Precisamos de critérios claros e dados científicos, ao invés de radicalismos e desinformação para este diálogo, que é necessário, mas ainda não estamos neste ponto", adverte o médico.

A essa altura, já se sabe que o isolamento apenas de pessoas do grupo de risco, proposto por Bolsonaro, foi experimentado em alguns países da Europa, como a Inglaterra e a Holanda, e abandonado após o número de doentes crescer exponencialmente de forma a ameaçar os sistemas públicos de saúde destas nações.

Entre os líderes europeus que foram inicialmente resistentes ao isolamento, Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, viveu o exemplo mais emblemático.

Já no dia 13 de março, mais de trinta países da Europa haviam suspendido as atividades letivas. Contudo, o primeiro ministro britânico disse à população que não havia justificativa para a medida. O isolamento vertical, com a recomendação de que idosos (de 70 anos ou mais) permanecessem em casa por quatro meses, veio três dias depois, acompanhado da proibição de eventos públicos e da orientação para que os britânicos trabalhassem de casa quando possível.

Esta abordagem não funcionou e, no dia 20 de março, ele fechou o comércio do Reino Unido. No dia 23, o país decretou a quarentena. Cinco dias depois, Johnson testou positivo para a doença e teve que ser levado para o que seria uma semana entre a vida e a morte em um leito de terapia intensiva, que, felizmente, estava disponível por conta das medidas de distanciamento social que foram adotadas para proteger o NHS (National Health System), o sistema público de saúde da Inglaterra. Boris Johnson informou a população do Reino Unido sobre o seu teste positivo para Covid-19 ainda no dia 28 de março.

Clareza e liderança política – independentemente de posições político-partidárias ou ideológicas – são fundamentais para endereçar crises desta magnitude. Conforme salientou o médico Valente, a ausência destas qualidades causa danos incalculáveis.

Nos EUA, por exemplo, Donald Trump sugeriu que as pessoas tomassem desinfetante para enfrentar a doença. Após a sugestão do mandatário norte-americano, a cidade de Nova York observou um aumento de casos de intoxicação pelo produto. No Brasil, contrariando dados científicos que demonstram, unanimemente, a eficácia das estratégias de isolamento social no combate ao vírus em dezenas de países, Bolsonaro segue alegando que as medidas são inócuas.

"Tão nociva quanto a falta de insumos materiais e humanos na luta contra a doença são as falas e os exemplos do presidente da República. Eu destacaria isso, sem dúvida, porque ele simplesmente tem uma postura de descaso e negação da pandemia. É inconcebível termos um presidente que reage, repetidamente e já com milhares de mortos em decorrência da doença, como o Bolsonaro. As falas dele representam um dos maiores obstáculos na luta contra a Covid-19, porque elas ganham efeitos práticos e não são apenas discursos", garante o médico.

Ainda de acordo com ele, parte fundamental no processo de enfrentamento à pandemia diz respeito a esclarecer a população sobre temas correlatos à doença.

"Como médico, eu aconselho as pessoas a procurarem informações em boas fontes (…) cuidado com WhatsApp e redes sociais. Ouçam os especialistas de cada área. Fiquem em casa neste momento. Reforcem as medidas de distanciamento social. Ainda não chegamos ao pico (de contaminação da doença). Essa colaboração nos ajuda demais, porque, desta forma, a quantidade de gente doente que chega aos hospitais ao mesmo tempo para ser atendida continuará sendo administrável", conclui Valente.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).

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