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Entendendo Bolsonaro

Como a fala de Weintraub na reunião resume o bolsonarismo

Entendendo Bolsonaro

24/05/2020 12h39

O desprezo às regras do jogo; o ressentimento; o ethos antissistema e a militância subversiva: as bases do bolsonarismo estavam presentes no discurso inspirado de Abraham Weintraub, o guerreiro voluntarista do MEC (Crédito: Reprodução)

Rafael Burgos

O vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril ilumina contornos até então pouco conhecidos dos bastidores do bolsonarismo em Brasília. Trata-se, afinal, da nossa primeira imersão numa reunião da elite governamental do Executivo brasileiro, e num contexto de crise política, econômica e sanitária sem precedentes históricos.

Ao longo das quase duas horas de encontro, houve uma figura que, talvez mais do que o próprio presidente Jair Bolsonaro, se destacou por encarnar, numa breve fala, aspectos centrais que compõem a natureza do bolsonarismo. Falo do ministro da Educação, Abraham Weintraub.

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Pretendo destacar, neste texto, os principais trechos do seu curto, porém representativo, discurso de aproximadamente cinco minutos, ilustrando como nas palavras do chefe do MEC moram alguns dos valores que essencialmente estruturam a ideologia bolsonarista.

'Não vim pra jogar o jogo': legitimando a subversão

Eu percebo que tem muita gente com agenda própria. Eu percebo que tem, assim, tem o jogo que é jogado aqui, mas eu não vim pra jogar o jogo (…) A gente tá conversando com quem a gente tinha que lutar.

Abraham Weintraub

Jair Bolsonaro usou da democracia para tornar-se presidente em eleição referendada pelas urnas. Entretanto, ao longo deste mesmo processo, o então candidato já havia deixado bem claro um sentimento exalado por Weintraub na reunião: ele não foi eleito para jogar, mas para destruir as regras do jogo.

Já disse em outras oportunidades neste blog que o bolsonarismo, mesmo enquanto governo, talvez gaste mais energia construindo a caricatura do adversário do que definindo a si mesmo da maneira que lhe convém. Há uma razão bem simples para isso: a única maneira de legitimar os seus intentos autoritários é pintando-os como uma "reação".

Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!

Jair Bolsonaro

Neste sentido, os signos "liberdade" e "ditadura", elementos-chave na retórica tanto de Bolsonaro como de Weintraub ao longo da reunião, são fundamentais ao demarcar este quadro de ação-reação: a partir dali, qualquer movimento mais duro do governo seria um ato de defesa contra a "ditadura" dos governadores e prefeitos.

É a este mesmo propósito que se destina a nota, em tom de ameaça golpista, emitida pelo general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), na sexta (22). Tratava-se de delimitar, previamente, a condição de Bolsonaro enquanto agredido, vítima de uma "tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes". Heleno fez ali um exercício da mesma natureza que fazem Weintraub e Bolsonaro ao denunciarem a tirania dos estados e municípios: construir, previamente, a narrativa de contragolpe.

Quando reclama do ambiente em Brasília, "A gente tá conversando com quem a gente tinha que lutar", o ministro da Educação encarna essa mesma visão de mundo bolsonarista: Weintraub está decepcionado com as partes do governo que ainda optam pela institucionalidade. É a pregação contra o diálogo, o incômodo com o jogo que ele não aceita mais jogar.

'Eu sou o único que levou processo aqui': o guerreiro voluntarista

Eu vim aqui pra lutar. E eu luto e me ferro. Eu tô com um monte de processo aqui no Comitê de Ética da Presidência. Eu sou o único que levou processo aqui (…) Eu realmente tô aqui de peito aberto, como cês sabem disso.

Abraham Weintraub

O bolsonarismo entende a si mesmo como uma marcha constante, uma cruzada em nome do povo e contra os inimigos da pátria. Nessa travessia, os guerreiros de mais prestígio se distinguem pela força de vontade. Nas palavras de Jason Stanley, filósofo estudioso do autoritarismo, em artigo para este blog: "No cerne da ciência estão a factualidade e a razão, no cerne do fascismo estão a força de vontade e a fé".

Na ânsia de se autopromover diante do presidente, Weintraub resolveu exibir os seus dotes de guerreiro voluntarista e antissistema. "Sou o único que levou processo aqui", disse ele antes de acrescentar mais uma qualidade indispensável à sua função, a de verdadeiro militante do movimento: "Mas eu também tô levando bordoada e tô correndo risco (…) Eu sou, evidentemente… eu tô no grupo dos ministros que tá mais ligado com a militância. Evidente, porque eu era um militante. Eu tava militando de peito aberto, continuo militando."

'O povo tá gritando por liberdade': a recusa a ser governo

A gente tá perdendo a luta pela liberdade. É isso que o povo tá gritando. Não tá gritando pra ter mais Estado, pra ter mais projetos, pra ter mais… o povo tá gritando por liberdade, ponto. Eu acho que é isso que a gente tá perdendo, tá perdendo mesmo. A ge… o povo tá querendo ver o que me trouxe até aqui.

Abraham Weintraub

Talvez o elemento de maior espanto para quem teve a oportunidade – ou o infortúnio – de assistir à íntegra da reunião seja a constatação de que quase nada se discutiu a respeito de ações para enfrentar a brutal crise sanitária e econômica que atinge o País.

Basicamente, era de estratégias narrativas que tratavam os presentes. O bolsonarismo se recusa a ser governo e, como resta evidente, possui compromisso zero com a agenda concreta de desafios do País. À época – no dia 22 de abril – , já eram 45 mil casos confirmados de Covid-19 e 2.906 mortes em decorrência da doença no Brasil.

Mas, segundo o ministro Weintraub, o brasileiro, na verdade, estava preocupado com outra coisa. Não estava "gritando pra ter mais Estado, pra ter mais projetos", o que, pela lógica, justifica a preocupação exclusivamente narrativa daquela reunião. O ministro é a expressão maior de um antigoverno na pandemia.

A alma do bolsonarismo

Desprezo às regras do jogo; ressentimento; ethos antissistema e voluntarismo: os signos presentes à fala do ministro da Educação são os mesmos que fundam a alma do bolsonarismo. Foi o "alerta do Weintraub", nas palavras do ministro da Economia, Paulo Guedes, que deu a tônica tanto da intervenção final de Bolsonaro como do último discurso da reunião, proferido por Guedes.

Foi dirigindo-se, a todo instante, a Weintraub, em complemento ao que disse o titular do MEC, que Bolsonaro protagonizou as falas mais graves da reunião, quando evocou a importância do golpe de 64, alegou dispor de um sistema privado de informação, o que é crime, e, também, quando pregou armar a população com a finalidade política de confrontar prefeitos e governadores, na prática, a desobediência civil.

"O que o Weintraub tá falando, eu tô com 65 anos, a gente vai se aproximando de quem não deve. Eu já tenho que me policiar no tocante a isso daí. São pessoas aqui em Brasília, nos três poderes, que não sabem o que é povo".

Jair Bolsonaro

Se, como disse no blog, a reunião do dia 22 significou um verdadeiro teste de fidelidade ao líder inseguro que é Bolsonaro, não parece haver concorrência para o ministro da Educação: ali estava o mais ambicioso soldado do confronto final que o bolsonarismo sonha para o Brasil.

Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".

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