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Entendendo Bolsonaro

'Boca suja' de Bolsonaro tem papel expressivo na construção de sua imagem

Entendendo Bolsonaro

28/06/2020 09h32

(Crédito: Gabriela Biló/Estadão)

* Alvaro Magalhães Pereira da Silva e Ana Rosa Ferreira Dias

O que os palavrões na fala do presidente Jair Bolsonaro representam? Que uso efetivo Bolsonaro faz dessas palavras? Ou mais especificamente: que papel cumprem elas no discurso presidencial e que impacto têm na construção da imagem pública do presidente?

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Muito se falou sobre a "boca suja" de Bolsonaro desde a divulgação, há um mês, do vídeo da reunião de 22 de abril. Fora os comentários gerais e memes que circularam nas redes, órgãos de imprensa das mais diversas linhas tentaram organizar um placar dos palavrões proferidos pelo presidente e por seus auxiliares.

Mas, para melhor analisar a linguagem de Bolsonaro, parece interessante dar um passo atrás: verificar antes como se definem os palavrões e que funções eles costumam exercer para, em seguida, tentar compreender especificamente que uso o presidente faz deles, em contraste com outros usos possíveis.

O que são palavrões e como costumam ser usados?

Foi Dino Preti um dos pioneiros dos estudos acadêmicos brasileiros a respeito de termos tabus, típicos da oralidade. Há 40 anos (em abril de 1980), não em um "paper", como seria de se esperar, mas em um texto do Suplemento Cultural do jornal O Estado de S. Paulo, Preti lançou um artigo seminal a propósito do palavrão.

Professor-titular do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP e, posteriormente, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da PUC-SP, ele já há muito havia rompido, com elegância excepcional, certa resistência de eruditos em relação a expressões mais populares, mostrando que termos um tanto mal vistos, como as gírias, cumprem determinadas funções na fala e merecem análise.

No artigo do Estadão em que trata especificamente dos palavrões, Preti vale-se do então recém-lançado "Dicionário do palavrão e termos afins", do folclorista Mario Souto Maior, para apontar a dificuldade de se definir o que é e o que não é palavrão e, em seguida, apresentar o conceito que considera mais adequado.

Após examinar algumas teses de Pierre Guiraud (professor da Universidade de Nice morto em 1983 e notável estudioso da linguagem popular), compará-las com o uso corrente de palavrões e notar que o próprio Souto Maior, autor do dicionário de palavrões, teve dificuldade em defini-los (tendo de acrescentar a expressão "termos afins" no título de sua obra), Preti concluiu que palavrões são termos essencialmente injuriosos – ou seja, que podem ser usados para ofender.

Mas, mais que simplesmente designarem algo de forma ofensiva, os palavrões expressam essa ofensividade: são como uma demonstração de sentimentos violentos contra pessoas ou acontecimentos que provocariam raiva ou indignação no falante. Não à toa, um dos lugares privilegiados de seu uso (e de maior aceitação) é o estádio de futebol, onde as emoções estão à flor da pele.

Além disso, Preti observa que o significado original dos palavrões está geralmente ligado à sexualidade ou à escatologia. Ademais, eles variam pouco. Palavras-tabu por excelência, os palavrões de uma época são mais ou menos os mesmos palavrões de outras épocas.

A despeito dessas duas características relativamente estáveis – a função expressivamente injuriosa e a quase imutabilidade ao longo do tempo –, Preti reconhecia que o clima da sociedade brasileira da virada dos anos 1970 para os anos 1980 vinha provocando uma transformação profunda: o uso do palavrão, sobretudo entre os jovens, se tornava mais recorrente. E, o que era mais excepcional, essas palavras passavam a exercer nas falas da juventude funções novas, por vezes inversas às da injúria, tornando-se termos carinhosos.

Com a ditadura militar em seus últimos momentos e o fim da censura, essas transformações começavam a se refletir também na cultura pop, penetrando nas letras das novas bandas, nos scripts de TV e nas legendas dos filmes no cinema. Os anos 1970 e 1980, então, parecem ter sido os anos do "desbunde do palavrão".

Que uso Bolsonaro faz do palavrão?

Mas com que feição, depois desse "desbunde", o palavrão chegou à reunião ministerial de Bolsonaro?
Em primeiro lugar, cabe salientar que as matérias jornalísticas que se seguiram à divulgação da reunião de Bolsonaro indicam que, mesmo após as transformações das últimas décadas, continua difícil definir o que é e o que não é um palavrão.

Jornal de grande circulação voltado às classes mais altas da população, a Folha encontrou 33 palavrões na boca do presidente. Já o Extra, um dos principais jornais populares do Brasil, voltado sobretudo ao Estado do Rio de Janeiro, contou 34 palavrões ditos por Bolsonaro.

Mais comedido, o Catraca Livre, site criado pelo jornalista Gilberto Dimenstein voltado ao público jovem, achou 29 palavrões na boca presidencial.

"Estrume" é palavrão, como considerou o Extra? "Filho de uma égua" é palavrão, como considerou a Folha? Não é uma questão tão simples. Mas, independentemente desses termos que se colocam no limite do que se pode considerar um palavrão, vários outros menos polêmicos (como "porra", "bosta" e "puta") foram usados pelo presidente por mais de uma vez. E, olhando-se com cuidado esses usos, pode-se chegar a três conclusões:

1. Um uso do palavrão que preserva a imagem conservadora

Bolsonaro utilizou na reunião os palavrões como injúria. Ou seja, o uso que o presidente faz desses termos é conservador, anterior às transformações dos anos 1970 e 1980 e à abertura tanto política como comportamental do Brasil.

Se a "boca suja" do presidente pode então chocar certos conservadores, o uso que Bolsonaro fez deles ao menos minimiza esse efeito, considerando que, mesmo nos setores tradicionais da sociedade, esse tipo de uso é aceitável em determinados ambientes.

2. Um uso do palavrão que cria a imagem de indignação e combatividade

Os palavrões do presidente contribuem também para dar o tom de "bronca" que a reunião de 22 de abril ganhou.
Uma das interpretações mais recorrentes do encontro é que Bolsonaro, dizendo-se um integrante da linha de frente no combate aos adversários políticos do governo, cobrava dos ministros a mesma atitude. Ou seja, exigia que fossem enfáticos na defesa do governo.

O palavrão parece ter sido então também usado como uma forma de o presidente demonstrar um sentimento de indignação com as posturas de seus auxiliares que considerava frouxas.

3. Um uso do palavrão que fortalece o grupo aliado

Após essas duas primeiras conclusões, é possível notar um terceiro aspecto do uso do palavrão por parte de Bolsonaro bastante intrigante: embora os palavrões usados como injúria pelo presidente contribuam para o tom de bronca da reunião de 22 de abril, o alvo da injúria do presidente não é, como seria de se esperar, o alvo da bronca.

O que ocorre é que Bolsonaro, por um lado, utiliza determinados palavrões, principalmente os de origem escatológica, para qualificar seus adversários políticos ("esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro" etc), rebaixando-os dessa maneira.

Por outro lado, o presidente também utiliza outros palavrões, sobretudo os de origem sexual, para se referir a ataques realizados pelos seus adversários a seus aliados ("foder a minha família toda" etc), dando a entender que seus adversários, já rebaixados pelos outros palavrões, têm sido bastante agressivos.

Esses dois movimentos – o de rebaixar os adversários e o de sugerir que esses mesmos adversários fazem ataques pesados –, realizados de forma simultânea, parecem servir para manter o grupo bolsonarista mais unido e aguerrido.
Não à toa, a linguagem do presidente aparentemente provocou um efeito catártico: a despeito da aparente bronca que levavam, ministros se mostraram confortáveis para também xingar oponentes.

E a imagem de Bolsonaro como fica?

Considerando todos esses aspectos, o impacto dos palavrões da reunião de 22 de abril na imagem de Bolsonaro parece ambíguo. E suas ambiguidades têm sido exploradas tanto por grupos favoráveis como por grupos contrários ao presidente.

Enquanto os partidários de Bolsonaro procuram ressaltar que a "boca suja" do presidente na reunião deve-se sobretudo ao fato de ele ser um líder obstinado e sincero, que fala o que pensa, sem papas na língua, grupos contrários a Bolsonaro ressaltam que o fato de o presidente injuriar com palavrões seus adversários e, também com palavrões, atribuir a eles ações agressivas sugere que o presidente é um homem paranoico, com síndrome de perseguição e, por isso, desequilibrado. São versões em disputa no espaço público.

De toda forma, a divulgação da reunião, realizada a portas fechadas, parece provocar um certo efeito de "carnavalização", noção definida pelo pensador russo Mikhail Bakhtin como a transposição para o discurso da quebra de hierarquia típica do Carnaval ("O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores", afirma Bakhtin em seu famoso livro sobre Dostoiévski).

Sem dúvida, expor certa intimidade do presidente em reunião o tira um pouco da pompa de seu cargo.
Além disso, os próprios modos como Bolsonaro e os ministros se referem a adversários políticos já parece carnavalizado: de integrantes do STF a governadores, todos são despidos das honras dos cargos que ocupam.

É verdade que o próprio Bolsonaro por vezes deixa de lado essa respeitabilidade. Em diversas ocasiões, vale-se de certa linguagem maliciosa (como no ataque à repórter da Folha Patrícia Campos Mello, em que jogou com um sentido duplo da palavra "furo").

Mas a malícia é diferente do palavrão. É uma linguagem que se insinua, sem escrachar, permitindo a quem dela se vale negar o dito e atribuir a quem ouve a responsabilidade pelo "mal pensamento". O palavrão, por sua vez, não admite mal-entendido: é, como se diz, curto e grosso.

* Alvaro Magalhães Pereira da Silva é jornalista, doutorando em Língua Portuguesa, pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC), da USP, e do Grupo de Pesquisa Discursos na Mídia Escrita (DiME), da PUC-SP.

Ana Rosa Ferreira Dias é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da PUC-SP. É líder do Grupo de Pesquisa Discursos na Mídia Escrita (DiME), da PUC-SP.

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