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Entendendo Bolsonaro

“Sem coordenação nacional, a situação seguirá piorando”, diz pesquisadora

Entendendo Bolsonaro

01/09/2020 00h00

"Nenhum outro país trocou a liderança na gestão da Saúde durante a pandemia" (Crédito: IEA/USP).

* Cesar Calejon
Quando a pandemia causada pela covid-19 estiver efetivamente encerrada – ao que tudo indica, em algum ponto do segundo semestre de 2021 – e os pesquisadores voltarem os seus esforços para entender como o Brasil registrou sozinho um número maior de óbitos causados pela doença do que todos os seus vizinhos sul-americanos somados, haverá três aspectos elementares a serem aprofundados.

O primeiro deles é o simbolismo presidencial, que ao longo de toda a pandemia negou a ciência e as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) junto à população brasileira; o segundo, a ausência da coordenação federativa, como resultado da falta de liderança e articulação da administração Bolsonaro nos âmbitos federal, estadual e municipal para a formulação de políticas públicas (de saúde e civil) eficazes; e o terceiro será a subnotificação de casos, devido aos baixíssimos níveis de testes que foram realizados na população brasileira e à morosidade do governo federal em adquirir os reagentes necessários para viabilizar o processo em ampla escala.

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Para aprofundar este debate com o devido respaldo científico, esta semana o blog conversou com Lorena G. Barberia, professora livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora atuante na linha de frente do combate à pandemia.

"Estamos realizando várias pesquisas para avaliar as respostas do governo federal, (governos) estaduais e municipais (frente à pandemia). A nossa pesquisa mais recente foca na resposta das políticas de saúde e nas medidas de contenção da pandemia", introduz a professora, que vem colaborando com pesquisadores internacionais da Universidade de Oxford.

"Na ausência de vacinas e medicamentos para curar os infectados, a OMS recomendou o aumento do distanciamento físico e a adoção de medidas econômicas e sociais que ajudassem a população a sobreviver em meio à crise e a permanecer em casa. Desde março, o boletim mais recente que produzimos mostra que o governo federal adotou medidas para fragilizar as políticas estaduais e municipais voltadas a aumentar o distanciamento físico", explica Barberia.

De acordo com ela, as administrações federais prévias, que foram conduzidas por diferentes partidos políticos, foram mais capazes de articular respostas coordenadas para as crises sanitárias do que a atual gestão brasileira.

"No gerenciamento de uma pandemia, um país precisa ativar um sistema de emergência com regras e responsabilidades bem definidas. No Brasil, os enfrentamentos das pandemias mais recentes foram conduzidos com estratégias claras do governo federal, de modo a orientar o SUS (Sistema Único de Saúde) e coordenar a ação dos estados e municípios. Foi assim nos casos da AIDS, do H1N1 e da SARS, que deram crédito ao Brasil no plano internacional. No caso da covid-19, isso não aconteceu. O governo federal não apresentou qualquer estratégia elaborada para combater a pandemia no âmbito nacional", garante a pesquisadora.

"Além das ações mais evidentes de intervenção na saúde da população", prossegue ela, "como a criação de hospitais de campanha, a habilitação de leitos de UTI COVID-19 e a manutenção de unidades de saúde básica, o governo federal também possui outras atribuições na gestão de emergências de saúde. Ao comparar (a gestão de Jair Bolsonaro) com outras federações, torna-se evidente que os casos de sucesso se destacam por ter coordenação no nível nacional, ainda que os governos subnacionais tenham um papel importante na implementação e até na definição de prioridades dentro de seus territórios".

A pesquisadora da USP conta que vem estudando as respostas de países que obtiveram resultados mais eficazes contra a doença, como Argentina, Alemanha e Canadá, e casos mais problemáticos, como os EUA e México. "Todas são federações, ou seja, países nos quais os governos subnacionais têm maior autonomia", ressalta.

Sobre quais seriam os pontos preponderantes para explicar o êxito dos países estudados, ela aponta: "várias diferenças importantes. No caso do Brasil, houve a troca do ministro da saúde duas vezes e o atual responsável, o general Eduardo Pazuello, está no cargo há cerca de noventa dias como interino. Os outros países não trocaram a liderança na gestão da pasta durante a pandemia".

"Além disso, as nações que lidaram com a pandemia de forma mais eficiente desenvolveram rapidamente a capacidade de testagem, adquiriram tecnologia e a habilidade de divulgar estes protocolos foi coordenada pelas autoridades sanitárias nacionais desde as primeiras semanas de janeiro de 2020 ao longo dos seus territórios", enfatiza Barberia.

Segundo ela, no caso do Brasil, a capacidade de testagem foi concentrada em São Paulo e Rio de Janeiro, inicialmente, e demorou a chegar ao resto do país.

"Houve testagem em massa e rastreamento de contatos desde o início (da pandemia) em vários destes países. Houve alta coordenação nas medidas adotadas pelos governos subnacionais e o governo federal exerceu um papel importante em coordenar essas respostas nestes países", explica a professora.

"Ao fazermos essa comparação com outros países, fica evidente que o Brasil tem um número bem maior de óbitos do que os outros países pelas falhas que apontamos acima: falta de testagem, falta de apoio às medidas recomendadas pela OMS, falta de liderança e coordenação de políticas de saúde para todos os níveis da nação. O governo federal brasileiro adotou políticas que estão absolutamente na contramão das medidas recomendadas pela OMS", aponta Barberia.

Ainda de acordo com ela, as mensagens transmitidas à população por meio do simbolismo presidencial vêm agudizando a crise sanitária no Brasil.

"O presidente fala contra as medidas que têm sido comprovadas cientificamente para evitar e diminuir a transmissão do vírus pela OMS. Dessa forma, as falas da liderança geram confusão na população sobre se há que aderir ou não ao distanciamento físico, a usar máscaras, tomar certo tipo de medicação, a evitar aglomerações e procurar ficar em casa, por exemplo", ilustra a pesquisadora.

"As nossas pesquisas que analisam a evolução da pandemia na federação ajudam a entender como chegamos a superar 100 mil, mas também alertam que podemos adotar políticas para diminuir o número de casos e óbitos. Quando se observa o número de novas mortes por milhão de habitantes, o Brasil desponta em primeiro lugar com 33 novos óbitos, colocando-se à frente dos EUA, que registraram 24 novos óbitos entre 2 e 8 de agosto. Sem coordenação nacional no enfrentamento da pandemia, a situação vai continuar piorando", conclui Barberia.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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