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Entendendo Bolsonaro

No 7 de Setembro, Bolsonaro reinventa mito da identidade nacional

Entendendo Bolsonaro

08/09/2020 22h44

Presidente Jair Bolsonaro faz pronunciamento de 7 de Setembro (Crédito: Reprodução)

* Bruno Frederico Müller

No último 7 de Setembro, Dia da Independência do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro conduziu mais um pronunciamento em rede nacional, no qual fez o que os mistificadores fazem de melhor: criou uma falsa linearidade histórica, com o propósito de reinventar a mitologia da identidade brasileira, centrada nas ideias de miscigenação e liberdade.

A identidade nacional começou a ser desenhada com a miscigenação entre índios, brancos e negros. Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados.

Jair Bolsonaro

A exaltação da miscigenação não é nada de novo na nossa história. Começa com o mito do Império falando do encontro dos povos que formaram o Brasil, os europeus, africanos e indígenas, como se não houvesse hierarquia entre eles, como se uns não tivessem sido escravizados e outros exterminados, e culmina nos trabalhos de Gilberto Freyre e o mito da democracia racial.

Já o mito da luta pela liberdade vem da ideologia da Guerra Fria, em que a liberdade se tornou sinônimo de capitalismo liberal, e culmina no discurso da extrema-direita americana contemporânea, na qual o fascismo brasileiro se espelha. Nos dois casos, trata-se de uma retórica que foi criada, alimentada e aperfeiçoada pelas Escolas Austríaca e de Chicago, berços do neoliberalismo, e que dizem que liberdade significa cortar impostos dos mais ricos e programas sociais dos mais pobres, deixar os desempregados e os mais vulneráveis à sua própria sorte, pois o Estado de bem-estar social é "o caminho da servidão", e patrocinar golpes de Estado contra governos de esquerda.

Foi dessa forma que Bolsonaro conseguiu a proeza de colocar, numa falsa linha de continuidade, a independência do Brasil, a participação (hesitante e medíocre) do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o Golpe de Estado de 1964.

Uma independência oligárquica que manteve a escravidão, uma adesão de conveniência às potências aliadas por uma ditadura que passou quase dez anos flertando com o fascismo e um golpe de Estado que depôs um presidente com uma agenda que visava transformar o Brasil numa democracia plena, projeto interrompido pela imposição de uma ditadura de 21 anos, sob pretexto do combate ao comunismo. Três momentos de reafirmação da adaptável e antidemocrática cultura política das elites brasileiras, mistificados como símbolos da gloriosa e vitoriosa luta de um povo pela liberdade. Está criado o mito fundador do fascismo brasileiro.

Fiquei curioso para saber quem foi que redigiu o discurso, pois certamente o presidente não tem a destreza necessária para articular essas ideias. Eu apostaria em Filipe Martins, o olavista integrante do Gabinete do Ódio e recentemente promovido assessor chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais da Presidência.

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Não há grandes novidades nesse discurso para quem vem estudando o bolsonarismo antes mesmo dele chegar ao poder, e alertando desde o início para o fato de que este governo é uma coalizão de liberais e fascistas. Ainda assim, o pronunciamento chama atenção pelo fato de que pela primeira vez a ideologia bolsonarista foi minimamente sistematizada. Assim como chama atenção porque esta é a milionésima prova de que, não, o governo Bolsonaro não foi domesticado e, não, a influência olavista não foi neutralizada.

No entanto, parte dos liberais na oposição segue se surpreendendo com o governo, demonstrando que não o compreende. Alimentam falsas interpretações que o dividem em "núcleos" (militar, tecnocrático e ideológico), o que lhes permite adiar a pressão pela destituição de um governo antidemocrático que já cometeu dezenas de crimes de responsabilidade e desobrigar-se de fazer a mesma autocrítica que cobram da esquerda – separando artificialmente os liberais no governo dos radicais de direita, em vez de tentar entender porque tantos liberais se sentem confortáveis nessa coalizão.

Trata-se de um comportamento conveniente, já que, dessa forma, eles podem continuar criticando o governo e apoiando suas "reformas" liberais, que seguem a mesma linha elitista, antidemocrática, demofóbica e assassina do fascismo escancarado da dita "ala ideológica".

Nesse mesmo fim de semana, porém, o que mais captou a atenção da esquerda foi a entrevista do cantor e compositor Caetano Veloso em que ele abjurou seu próprio passado liberal, sob influência do historiador Jones Manoel, que vem ganhando proeminência nas redes sociais advogando teses revisionistas sobre a ditadura de Josef Stalin, contribuindo para sua reabilitação e de seu regime genocida e totalitário. Os dois fenômenos não são paralelos.

A radicalização antidemocrática de parte da esquerda é uma resposta direta ao avanço da extrema-direita no Brasil. Alguns insistem na irrelevância de falar dessa extrema-esquerda ou "falsa simetria" da comparação, porque, sim, a extrema-direita hoje é muito maior, mais forte, e está no poder. Mas não podemos descuidar de combater também os mitos e revisionismos da esquerda autoritária, sob pena de a democracia ser esmagada, num horizonte não tão distante, pela pressão dos extremistas – mesmo que um desses extremistas sirva apenas de pretexto para os outros.

O pior aspecto deste pronunciamento do 7 de Setembro é que, ao se apropriar de um valor iluminista – a liberdade – e de um costume que só é bem-vindo em sociedades livres – a miscigenação – o fascismo brasileiro promove uma distorção que tem como um dos resultados uma reação em sentido contrário, emotiva, instintiva, de rejeição destes valores e costumes, pela esquerda. Essa rejeição não é nova, vem da ascensão do identitarismo de esquerda, que com seus atos e discursos relativiza a liberdade de expressão, defende a censura e os julgamentos virtuais e encara a miscigenação como um apagamento das identidades minoritárias.

Mas à medida que liberdade e miscigenação passam a ser marcadores da identidade nacional fascista, a tendência é que a esquerda, em vez de disputar o sentido desses conceitos e denunciar a forma fraudulenta com que a extrema-direita os emprega, reforce e amplie seu flerte com o autoritarismo e até com o totalitarismo – é aqui que stalinismo e identitarismo se encontram, numa coalizão tão perigosa quanto a dos liberais e fascistas.

A novíssima esquerda que surge com o identitarismo e a reabilitação do stalinismo é totalitária na medida em que se pauta não pela liberdade, pela separação entre público e privado, pelo reconhecimento do direito ao pensamento divergente, mas pela urgência em transformar radicalmente a sociedade, valendo-se de mecanismos de controle e vigilância e pela estigmatização e perseguição da divergência – que será sempre liberal e fascista (não nos sentidos descritivos rigorosos que empregamos nas ciências sociais, mas como vagos insultos políticos), racista, machista, homofóbica, LGBTfóbica, com o objetivo de deslegitimar qualquer oposição e interditar o debate.

Esta novíssima esquerda já existia, mas agora avança como uma forma de identidade reativa e irracional ao sequestro que o liberal-fascismo fez dos valores iluministas, da liberdade, da humanidade universal, e até da igualdade. Essa atitude não nos levará a lugar nenhum. Mais do que saber o que ela quer ser, a esquerda precisa descobrir o que ela precisa ser no Século XXI para, ao mesmo tempo, ser alternativa tanto ao liberalismo quanto ao fascismo – separados ou coligados –, e não cometer os mesmos erros que cometeu no Século XX.

* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.


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