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Entendendo Bolsonaro

Bolsonarismo projeta nos adversários o espelho de seus vícios

Entendendo Bolsonaro

11/09/2020 23h33

(Crédito: Adriano Machado)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Na sua live semanal da última quinta (9), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), entre já costumeiras bizarrias, chamou a atenção por mais uma fala lamentável. Nela, dentro de um contexto de muitas piadas sexistas e defesa de trabalho infantil, dirigiu um comentário de duplo sentido, de teor sexual, a uma menina de dez anos que estava ali presente. Tratava-se de uma criança youtuber, que se apresenta como "repórter e apresentadora".

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Não vem ao caso aqui discutir o teor da "piada" feita, a qual, segundo especialista ouvido pelo UOL, viola o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Nº 8069, de 13 de julho de 1990). Pretendo, em vez disso, pensar nas reações ao episódio. Nesse caso específico, é preciso problematizar a aparente zona de tensão que talvez se espere que surja quando uma figura política da extrema direita faz um comentário aludindo a tema sexual e dirigido a uma criança de dez anos, dentro de um contexto em que a mesma extrema direita usa o abuso sexual infantil e a sexualização de crianças como arma de ataque contra adversários políticos.

Pergunto: o quanto de abjeção Bolsonaro causou a seus eleitores e bases de apoio, sobretudo as mais reacionárias e moralistas, quando fez uma "piada" sexual a uma menina daquela idade? Antecipo a resposta, a qual espero, ao final do texto, explicar com maior detalhamento: nenhuma. E isso diz muito sobre a visão de mundo da extrema direita no geral, o que inclui o bolsonarismo.

É uma característica da extrema direita contemporânea ter na sua prática política completa uma repetição daquilo que acusa a esquerda de fazer. Nesse caso, tratam-se de acusações geralmente sem conexão com a realidade, baseadas em caricaturas que articulam teorias conspiratórias, fake news, além de um vasto campo de informações produzidas e reproduzidas nos vários ecossistemas de circulação de suas ideias e pressupostos, nos quais formam suas visões de mundo e identidades políticas. A prática dessa extrema direita, muitas vezes, imita a caricatura que ela mesma faz de seus adversários políticos – a esquerda, sobretudo, mas progressistas, centro-direita também inclusos – com a diferença dela ser de sinal oposto.

É melhor explicar esse ponto através de exemplos. Vejamos o movimento de extrema direita Escola sem Partido. Sua premissa central é baseada numa caricatura, construída em cima de uma teoria conspiratória de que os sistemas de ensino, fundamental e superior, teriam sido hegemonicamente tomados pela esquerda. Esta, através do controle dos professores, materiais didáticos e das versões hegemônicas dos conteúdos e interpretações deles (nos quais se inclui temas diversos como a teoria da evolução das espécies, a forma geoide da Terra ou o consenso sobre o nazismo ser de direita) doutrinaria os alunos e, assim, progressivamente, imporia seus valores sobre toda a sociedade.

E qual é a solução proposta pelo Escola sem Partido contra a doutrinação da esquerda nas escolas? Pois bem, a alternativa é assumir o controle dos sistemas de ensino, perseguindo e intimidando professores "doutrinadores" (somente de esquerda), alterando livros didáticos e interferindo diretamente no seu conteúdo, além de modificar profundamente os currículos segundo suas premissas ultraconservadoras. Em suma, combate-se o que o movimento chama de uma doutrinação à esquerda com outra fundamentalista, de extrema direita.

Outro bom exemplo está na narrativa dos programas policialescos, que ocupam grades de televisão e rádio desde o final da ditadura militar e são importantíssimos para que entendamos as formas de pensar do bolsonarismo.
Basicamente, tais programas apresentam a narrativa de que estamos no pior dos mundos, no qual se predomina uma violência e criminalidade onipresentes em um tempo/espaço tomado pela degeneração de todos os valores humanos. Segundo essa mesma narrativa, protege-se permanentemente aqueles que agem contra as leis e contrato social em detrimento do cidadão comum, ou "cidadão de bem", que vive ilhado com seus valores tradicionais – trabalho, família, patriotismo, moral cristã, entre outros – num mar de corrupção.

E qual solução colocam no horizonte? Uma violência também onipresente, só que controlada pelo ethos do cidadão de bem, conformando o todo da sociedade aos valores com os quais se manteve ilhado durante todo o tempo, ainda que seja necessário usar de meios contrários às leis ou a qualquer contrato social – vingança, abuso de força policial, jurídica e estatal etc.

Alguns debates das últimas semanas sobre a PEC 32, a proposta apresentada pelo governo sobre a reforma administrativa, trazem também apontamentos nesse sentido. Durante muitos anos, diversos setores da direita brasileira (não somente a extrema) apontam para alguns vícios do funcionalismo público no Brasil, como a manutenção de privilégios de algumas categorias ou de o setor servir como cabides de empregos a governos e partidos em diversos contextos. A proposta apresentada pelo governo, contudo, preserva categorias do topo do setor público – ministros de tribunais superiores, procuradores, militares, etc. – além de atacar a estabilidade, abrindo brechas justamente para se criar cabides de empregos na administração pública, ao gosto de quem estiver no poder.

Nesse mesmo ponto, observo que a propaganda de Bolsonaro durante a campanha de 2018, na qual se contrapunha indicações ideológicas às técnicas, prometia ministros com capacidade reconhecida em detrimento de indicações políticas. Porém, não é preciso ir muito além de um Abraham Weintraub para dizer que o alinhamento ideológico ao bolsonarismo, e não qualquer mérito técnico comprovado, seja critério central para tais indicações.

Em suma, são muitos os exemplos de como a extrema direita opera criando uma caricatura com a qual enquadra e reduz seus adversários políticos a ela e, uma vez no poder, faz algo idêntico, só que segundo suas premissas ideológicas. E esse é um elemento central: sintetiza a visão de mundo maniqueísta da extrema direita, verificada no bolsonarismo. Fazer o que acusam os adversários de fazer, imitando sua forma e invertendo o sinal do conteúdo, é a essência de várias ações desse campo ideológico.

Voltemos aos exemplos: a doutrinação do Escola sem Partido, o aparelhamento implícito na PEC 33 ou a violência onipresente segundo os valores dos programas policiais possuem um caráter de reificação dos projetos de sociedade que permeiam as racionalidades bolsonaristas. Se a doutrinação conspiratória da esquerda é o problema que o Escola sem Partido se ergue contra, a correção desse problema seria doutrinar segundo negacionismos científicos, reacionarismo e ultraliberalismo econômico; se o problema então é um aparelhamento à esquerda que corrompe o Estado, outro à extrema direita corrigiria seus rumos; se a violência da criminalidade é um pesadelo, a violência perpetrada, conduzida e universalizada pelo cidadão de bem, patriota, branco, cristão e trabalhador seria um sonho. E assim vai, nos inúmeros exemplos citados e noutros possíveis.

Nesse mesmo sentido, não importa quantas milhões de vezes pergunte-se no Twitter sobre os R$ 89 mil recebidos pela primeira-dama, pois o raciocínio também vale para todas as formas de corrupção: se a corrupção é representada como a imoralidade suprema, o pior dos mundos e sinal de completa degeneração do tecido social quando serve de arma política contra adversários, ela é irrelevante ou um mal necessário se ela reificar a mudança desejada segundo o ideal bolsonarista de sociedade e Estado.

E o que isso tem a ver com a "piada" de teor sexual feita por Bolsonaro e dirigida à menina de 10 anos? No caso, o fato de que, assim como a corrupção e tantos outros exemplos, o episódio de sexualização da infância será irrelevante para a narrativa que direciona essa prática a seus detratores.

Em 2017, o caso do Queermuseu em Porto Alegre desencadeou uma onda de ataques de grupos de extrema direita, como o MBL, ou liderados por políticos do mesmo campo como Alexandre Frota e outros vários pelo Brasil, a museus e exposições de arte por todo o país. A acusação central que era feita pautava-se na premissa de que as peças exposição não se tratavam de arte, mas, sim, de incentivo ou prática de abuso ou sexualização infantil.

A recente teoria conspiratória do QAnon ou a acusação divulgada nas eleições de 2018, na qual o pseudo-filósofo Olavo de Carvalho afirmava que um livro do então candidato Fernando Haddad (PT) defendia incesto e pedofilia, mostram o potencial de uso político do tema. O mesmo pode-se dizer de outra tese conspiratória, da chamada "ideologia de gênero".

Associar adversários ao abuso sexual infantil tem, politicamente, um duplo efeito: primeiro, o de levar o adversário nas urnas e no debate político para um campo além da política, colocando-o como inimigo, nesse caso, baseado na natural abjeção que o abuso sexual de crianças causa e deve causar nas pessoas. Um segundo, complementar ao primeiro, é o de fanatizar e criar coesão na sua própria base, que se une em torno de um sentimento quase religioso não baseado na ideia política de superar o adversário no campo democrático, mas sim na necessidade de eliminá-lo enquanto mal social.

Diante disso, Bolsonaro dificilmente será associado por essa extrema direita a qualquer sexualização da infância. Pelo contrário, ele permanece, no imaginário político dela, associado à defesa da infância contra esse problema. Essa extrema direita projeta os problemas do abuso infantil e sexualização de crianças sempre nos que estão opostos a eles no campo político. Em especial, projeta esses problemas sociais naqueles que defendem a educação sexual nas escolas como forma de identificar, denunciar e prevenir o abuso infantil. Necessário pontuar que o atual presidente antagoniza com tais figuras desde quando era deputado.

Cerca de 70% dos casos de violência sexual contra crianças acontece em casa, tendo familiares ou adultos de confiança e com acesso às crianças vítimas de abuso como seus agentes. Juntamente a isso, existe um consenso entre entidades de proteção à infância e adolescência, além de acadêmicos que estudam o tema, sobre a importância da escola no sentido de prevenir o abuso sexual infantil.

Mas Bolsonaro representa o projeto de esvaziar a escola de qualquer função social além de repasse mecânico dos conteúdos das disciplinas. Dessa forma, atuar contra a sexualização de crianças, nessa visão de mundo da extrema direita, é tarefa da família – o mesmo ambiente, como disse, no qual acontecem 70% dos casos. Trata-se de uma ideia de privatizar uma função do poder público, da sociedade e dos sistemas de ensino. E quando um crime dessa natureza for identificado, a violência do "cidadão de bem" como forma de aplacar a abordagem do problema pela chave do pânico moral é a solução posta no horizonte. É preciso entender que nessa chave maniqueísta a própria existência desse tipo de crime e de outros tem função importante na construção dos discursos, que é o de atiçar pânico moral e senso de justiça baseado no ódio ao outro e vingança.

A fala de Bolsonaro, inclusive, tem atravessado a ela alguns outros pontos do pensamento maniqueísta da extrema direita. Por exemplo, uma condenação à "piada" sexual dirigida à criança pode ser jogada no campo do "politicamente correto", seguido de um típico "antigamente todo mundo fazia esse tipo de piada com crianças e ninguém reclamava" – e, obviamente, esse passado era melhor que hoje, já que, segundo a mesma visão, o abuso infantil seria produto de uma degeneração moderna.

Para concluir, devemos ter em vista a complexidade do problema: a visão de mundo maniqueísta do bolsonarismo, que atribui pesos e medidas diferentes para as mesmas ações, torna inútil denunciar certos episódios como o da live de quinta. Afinal, estamos falando de uma força política que se alimenta, precisamente, da crítica recebida por adversários, em regra impermeável às suas narrativas coesas.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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