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Entendendo Bolsonaro

Haddad: "Bolsonaro conseguiu dobrar o pior cenário projetado para a covid"

Entendendo Bolsonaro

08/10/2020 22h15

"Não houve protocolo, matriz de risco, coordenação e orientação para governadores e prefeitos, não houve uma reunião séria em Brasília. Nada". (Crédito: Vide Aguiar/Futura Press/Estadão Conteúdo)

[RESUMO] Esta é a quarta entrevista de uma série iniciada pelo blog, voltada às eleições municipais de 2020. Ao longo dessas semanas, estamos conversando com candidatos, de diferentes partidos, além de figuras proeminentes da política nacional, para discutir soluções aos múltiplos impasses pelos quais atravessa o Brasil. As entrevistas estão sendo transmitidas ao vivo no perfil do jornalista Cesar Calejon, no Instagram. Acompanhe!

* Cesar Calejon 

Para entender as proposições de um dos principais partidos políticos do país, nosso quarto entrevistado no Especial Eleições é Fernando Haddad, que foi ministro da Educação de 2005 a 2012, nos governos Lula e Dilma Rousseff, e prefeito da cidade de São Paulo de 2013 a 2016. Em 2018, ele esteve no segundo turno da disputa presidencial pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quando recebeu mais de 47 milhões de votos.

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Foi apresentado recentemente pelo PT o "Plano Nacional de Reconstrução e Transformação do Brasil", documento de 210 páginas que endereça a resposta institucional do partido à atual emergência social, econômica e política do país. Sobre essa iniciativa, Haddad afirma que não se trata de um plano de governo, mas de um subsídio para orientar o Congresso Nacional a organizar um plano de saída para a crise econômica.

"É um fato inédito na história um partido de oposição reunir mais de quinhentos especialistas de várias áreas do conhecimento, todos com experiência em gestão pública, acadêmica ou no terceiro setor, alguns atuam no atual governo, inclusive, e colaboraram de forma anônima para não sofrerem nenhum tipo de constrangimento. É um programa extenso, que passa por todas as questões relevantes (para a sociedade brasileira). A questão ambiental, matriz energética, geração de empregos, a criação de um programa de renda turbinado chamado Mais Bolsa Família, política de recuperação de obras públicas, apoio a micro e pequena empresa, linhas de crédito para que essas empresas possam se recuperar rapidamente da crise financeira", introduz Haddad.

Para ele, nós "estamos falando pouquíssimo de ciência e tecnologia atualmente no Brasil. Nos últimos quatro anos, os investimentos neste setor caíram 70%. (…) A educação segue uma escalada obscurantista. Então, estou falando de áreas como política externa, meio ambiente , ciência e tecnologia, cultura, educação e saúde , que são áreas centrais (da vida social brasileira) e não são discutidas hoje no Brasil. (…) Do ponto de vista de um projeto estratégico para o país, nós estamos absolutamente à deriva".

Sobre os processos de ativismo judicial que foram muito presentes nas últimas eleições presidenciais, Haddad ressalta que "hoje, uma boa parte do Brasil lamenta o uso político que foi feito da Operação Lava-Jato. Ao ponto que o ex-juiz (Sergio Moro) está pensando em deixar o país, porque não tem ambiente para permanecer aqui. Olha, eu fui candidato à Presidência pelo PT e eu vou a todos os cantos, eu não tenho segurança, nada. Porque eu não devo nada para ninguém. Eu fui para Curitiba, que é uma cidade conservadora, mais de quarenta vezes. Avião de carreira (voo comercial). Eu nunca fui incomodado por ninguém. Parte do (Poder) Judiciário se deixou levar por uma onda partidária, ruim para o país", avalia.

"Toda eleição tem alguma iniciativa nesse sentido. Em 2012", prossegue ele, "eles marcaram o julgamento do mensalão para os trinta dias do período eleitoral. Eu nem sei como nós vencemos aquelas eleições (para a Prefeitura de São Paulo), porque todo dia acontecia algo e eu estava disputando contra o (José) Serra, que tinha ganhado da Dilma (Rousseff) dois anos antes na cidade de São Paulo".

"Em 2016, foi uma loucura. Prenderam um monte de gente que está solta hoje. Aquelas operações absurdas e fantásticas que eles faziam. Em 2018, aconteceu tudo o que o Brasil sabe, porque foi uma eleição presidencial. (…) Eu senti na pele o que é esse tipo de ação intimidatória contra a democracia", acrescenta.

Além da judicialização da política, duas outras forças estão muito presentes no cenário pré-eleitoral das eleições municipais de 2020: participação de candidatos com títulos militares e evangélicos.

"Eu sempre acreditei que existiam forças de extrema direita no Brasil que não conseguiam canais de expressão. Elas estavam travadas, porque nem o PT e nem o PSDB representavam essas pessoas, que acabavam votando no PSDB, mas sabendo que não era o partido dos seus sonhos. Essa extrema direita aplaude o golpe de 1964, acredita que a lei e a ordem devem ser mantidas na base da violência, é a favor de armar a população, tem uma visão racialista do Brasil, que a desigualdade (social) é aceitável e esse tipo de coisas que hoje a gente ouve com a maior naturalidade".

"O Brasil já teve dois milhões de integralistas nos anos 1930. Inclusive, eu desconfio que a sigma do integralismo é o M de (Benito) Mussolini deitado. Eles tinham o Mussolini como referência. Ou seja, o Brasil sempre teve isso e essa proposta expressa o posicionamento deste eleitorado extremista", acrescenta o ex-ministro.

Uma característica intrínseca da proposta ultradireitista é a redução do debate, o que também vem acontecendo durante as eleições de 2020.

"O (Jair) Bolsonaro não tem a menor condição de participar de um debate. Ele tentou poucas vezes e foram vexames muito grandes. Eu lembro da (jornalista) Miriam Leitão perguntando para ele sobre o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e ele não sabia sequer o que significa a sigla", relembra Haddad.

Para o petista, dois anos depois das eleições de 2018 o presidente brasileiro "continua com muita dificuldade. Ele evita os jornalistas, porque fica muito nervoso. O (Donald) Trump até participou do debate, mas interrompeu 120 vezes o seu adversário ou o moderador. São pessoas com muita dificuldade de estabelecer o contraditório. A democracia perde qualidade".

Na avaliação de Haddad, a gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro agravou a situação brasileira de forma significativa. "Não há dúvida sobre esse fato. A Índia, que tem a população sete vezes maior do que a nossa, não alcançou o número de mortes do Brasil. Estamos falando do colapso da gestão pública (brasileira). Não houve protocolo, matriz de risco, coordenação e orientação para governadores e prefeitos, não houve uma reunião séria em Brasília. Nada. O presidente não assumiu o comando do país e agora estamos beirando a casa de 150 mil mortes".

Ainda de acordo com ele, "nas estimativas iniciais, os especialistas diziam que, caso o Brasil fizesse tudo certo, morreriam entre 30 e 40 mil pessoas e, caso o país fizesse tudo errado seriam 70 mil vítimas (do covid-19). Esse era o pior número. A gestão Bolsonaro conseguiu dobrar o pior cenário projetado no começo do ano. Perdemos o dobro de vidas. Não era para ser assim. Não foi assim nos países liderados por gente séria".

Nesse sentido, Haddad acredita que a invocação do federalismo cooperativo, parâmetro constitucional que prevê a descentralização do exercício do poder entre os entes federativos da União, não pode ser usado pelo governo federal para justificar a sua ausência no enfrentamento à pandemia.

"O que a decisão do Supremo (Tribunal Federal) significa na prática é que vale a regra mais dura. Suponhamos que o presidente adote uma regra branda e um prefeito adote medidas mais rígidas. No município desse prefeito, vale a regra mais forte, porque a realidade nessa municipalidade pode ser diferente do contexto nacional", explica.

"Não existe, até hoje, nenhuma orientação do governo federal no sentido de coordenar e instruir as ações dos governadores e prefeitos. Em nenhuma área", complementa Haddad.

Com relação às eleições estadunidenses e a política externa da gestão Bolsonaro, ele afirma que "o Brasil deve ser amigo de todas as nações. Não podemos ser hostis com ninguém, ao menos que sejamos ofendidos em nossa soberania. Não podemos ser subservientes a ninguém. Por exemplo, o Brasil jamais poderia tolerar a atual política dos EUA para a nossa indústria do aço e etanol de milho para favorecer a reeleição do Trump".

"Caso o Biden vença, o que o Bolsonaro vai fazer? Demitir o Ricardo Salles e o Ernesto Araújo? Como ele vai estabelecer uma relação depois de tudo o que ele falou? Vai conversar com quem? Já brigou com a Argentina, China, França. Com o mundo todo", questiona Haddad, que também comentou a situação atual do Itamaraty. "A Fundação Alexandre de Gusmão está sendo humilhada com seminários terraplanistas. Como a diplomacia brasileira pode se meter em algo assim?"

Sobre os motivos pelos quais, apesar das denúncias de corrupção envolvendo a família Bolsonaro, o presidente seguir contando com o apoio de parte considerável do eleitorado brasileiro, Haddad faz uma analogia com a política do "rouba, mas faz".

"O bolsonarismo lembra muito o malufismo. Nenhum dos seus seguidores tinha muita dúvida de quem era o (Paulo) Maluf e ainda assim o apoiavam. Por isso não existe nenhuma indignação com todas as provas que surgiram de como a família Bolsonaro construiu o seu patrimônio desviando dinheiro público via servidores fantasmas. Todos os dias tem matérias nos jornais e os apoiadores do Bolsonaro não ligam a mínima, porque nunca foi esse o problema para eles", pondera Haddad

Por fim, ele ressalta que "o nacionalismo verdadeiro é forjado pelo povo. Quando o povo chega às universidades e começa a pensar o seu próprio destino você tem um projeto nacional em curso. Esse processo começou muito recentemente no Brasil, fruto dos investimentos que foram feitos nos últimos governos. É um processo histórico e longo: forjar a consciência nacional para despertar e emancipar o país. Ciência, política e arte. Essas são as três vias para a nossa felicidade", conclui.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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