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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro é o Coringa?

Entendendo Bolsonaro

14/11/2020 18h36

Tiranos do século XX, e não o Coringa, são os verdadeiros ícones culturais que inspiram Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução).

* Bruno Frederico Müller

Nas últimas 24h, as redes bolsonaristas se deleitaram com a comparação, estampada na capa da nova edição da revista IstoÉ, que associa Jair Bolsonaro ao personagem Coringa.

Chamando Bolsonaro de "inconsequente", "irresponsável" e "insano", o periódico involuntariamente produziu um meme de mão beijada para os trolls bolsonaristas, afinal de contas, para a sua narrativa, o Coringa representaria a mais perfeita caricatura do "herói antissistema" que provoca a fúria do "establishment", razão pela qual as acusações da revista voltam-se contra ela mesma. Mas, deixando de lado essa má escolha editorial, será que essa é, de fato, uma comparação adequada?

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Vejamos algumas características do personagem dos quadrinhos/cinema e como elas convergem ou divergem do personagem do Palácio da Alvorada:

Coringa é um gênio. Ele não só consegue elaborar planos complexos que testam os limites das habilidades de seu arquirrival, o Batman. Seu brilhantismo reside também e principalmente no fato de que suas maquinações colocam em xeque, sobretudo, as convicções morais do herói. Batman sabe que a única forma de deter o Coringa é matando-o, e o vilão está disposto a sacrificar sua vida apenas para comprovar sua tese de que a moralidade de Batman é uma ficção sem sentido. Coringa é o niilista definitivo. Batman sempre recua no último momento, mantendo-se fiel à sua regra moral de não matar, mas nos quadrinhos admite que esta seria a única forma de deter o arqui-inimigo. Batman pode vencer o duelo físico, mas o Coringa sempre leva vantagem no embate intelectual.

Bolsonaro tem cérebro de nabo. Seus planos não são obra de deliberação intelectual, mas de pura intuição: para onde vai o bom senso, Bolsonaro sempre segue o caminho oposto, na expectativa de incitar o conflito e trazer consigo sua turba. Quando consegue derrotar seus inimigos, como fez durante a pandemia, não é pela própria inteligência, mas pela estupidez dos adversários. Ou então, no caso da CoronaVac, simplesmente decretando-se vitorioso no embate com o governador Doria por circunstâncias totalmente alheias a ele mesmo. O presidente brasileiro também é um niilista, mas num sentido diferente do Coringa: não é que ele negue a existência da moral; ele simplesmente a despreza ou tem uma visão muito distorcida da mesma. Diferentemente do palhaço de Gotham, seu discurso é carregado de moralismo (ainda que perverso) e busca explorar o moralismo da sociedade.

O Coringa não tem um "plano-mestre". Ele não quer ser o Senhor do Crime ou o dono de Gotham. Ele é o "agente do caos", na sua manifestação mais pura: quase uma forma de arte, o caos pelo caos, numa obra que se basta e não requer outra justificativa que não a celebração do niilismo.

Quanto a Bolsonaro e Trump, eu até os chamei de "agentes do caos" no último artigo publicado neste blog, e eles de fato o são. Mas seu caos não é um fim em si mesmo ou a demonstração de uma tese. São uma tática usada para minar a democracia, atacar os adversários, mobilizar a militância e se manter no poder. Eles têm um "plano-mestre" e, definitivamente, nenhum senso estético.

No filme "Coringa", de 2019, diretamente referenciado pela sobredita capa, a origem do palhaço do crime é uma narrativa do descenso à loucura pela via do sofrimento, apoiada pelas tendências psicóticas do próprio personagem e pela indiferença da sociedade e das pessoas que lhe são próximas e pela sua própria sensibilidade, que o deixa metaforicamente desarmado para lidar com os abusos que sofre. O Coringa de Joaquin Phoenix é profundamente sensível e, mesmo em seus atos atrozes, ainda é guiado por um senso de justiça – ou vingança. Porém, no desfecho da narrativa, na emergência final do personagem, o Coringa aparece em sua forma completa e definitiva, como o "agente do caos" que está além da moral.

Bolsonaro não é louco nem descendeu à sua forma atual pelo sofrimento. À diferença de Arthur Fleck, ele é desprovido de qualquer sensibilidade. Sua história não é (ainda) de decadência, mas de uma ascensão política muito a fim àquela de um mafioso: ela se dá pela cobiça, pelo oportunismo, pela disposição de dobrar a lei e tomar atalhos para enriquecer e chegar ao poder a qualquer custo. Nessa caminhada ele não sofre: impõe sofrimento, e se regozija disso.

A indiferença social e violência que removem o que há de são e bom em Arthur Fleck são precisamente aquilo de que Bolsonaro tirou vantagem para subir na carreira política e que promove, uma vez na presidência. Não há em Bolsonaro qualquer senso de justiça, e sim de favorecimento – dele e de sua família. Há com certeza o desejo de vingança, sobretudo contra a esquerda, de destruí-la e persegui-la pelo simples prazer do ato, mas tal retribuição, suponho eu, vem antes da inveja que de alguma ideia de reparação. Ele inveja a popularidade de Lula, inveja a influência cultural da esquerda e sabe que diante destes (com todos os seus defeitos), ele sempre será um nanico, um militar fracassado, um político de baixa estirpe e uma nulidade intelectual. Bolsonaro é um ressentido que não superou a moral: está aquém dela.

Claro que tanto o Coringa quanto Bolsonaro são psicopatas, não dão valor à vida e se tornaram ícones culturais. Mas essas são semelhanças superficiais demais para sustentar qualquer equivalência entre os personagens.

Além de um artifício fácil para alavancar vendas, o tiro saiu pela culatra, pois os seguidores do presidente adoraram, vendo seu ídolo como um inimigo do establishment assim como o próprio Coringa. #Bolsoringa e #Bolsoringa2022 foram parar no topo dos trending topics do Twitter. Mas o que esse tipo de comparação tem de pior é que ele serve de fuga para as comparações que realmente importam.

Os ícones culturais com quem Bolsonaro tem mais afinidade pertencem ao terreno da realidade histórica, e não da ficção. Ocorre que associá-lo a grandes tiranos como Hitler e Mussolini é por demais desconfortável para os liberais que ajudaram a levar este Mito ao poder e ainda tentam dele tirar proveito.

* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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