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Entendendo Bolsonaro

Pasternak: "Pesquisadores não podem assistir calados ao que acontece"

Entendendo Bolsonaro

29/01/2021 12h43

"É preciso lidar com política. Precisamos nos preparar para isso e estarmos aptos a conversar com a sociedade, com o governo, com o setor industrial. Não podemos nos omitir, porque a ciência não pode ficar restrita aos laboratórios". (Crédito: Valor Econômico)

* Cesar Calejon

Embora sejam muito mais populosos do que Brasil e Estados Unidos, China e Índia registraram números inferiores de mortes decorrentes da pandemia. Por quê? Na tarefa de compreender a realidade brasileira, há inúmeros fatores sociais, históricos e culturais a serem considerados. Mas há um aspecto crucial que une Brasil e EUA nessa equação macabra: os negacionismos genocidas avançados pelas administrações Bolsonaro e Trump.

Para refletir sobre os estragos causados pelo bolsonarismo na forma como as comunidades médica e científica do Brasil se organizaram no combate à covid-19, o blog entrevistou Natalia Pasternak, microbiologista e divulgadora científica.

"A gestão bolsonarista simplesmente negou que o problema sequer existia e optou por não conduzir o Brasil durante a pandemia. Essa postura negacionista foi adotada desde o início da crise sanitária pelo próprio presidente da República e pelo governo federal. (…) As falas de Jair Bolsonaro são absolutamente anticientíficas e demonstram a total falta de conhecimento sobre como a ciência funciona. (…) Todo o esforço que é feito no sentido de esclarecer os brasileiros, o presidente joga pela janela", avalia Pasternak, que é presidenta do Instituto Questão de Ciência (IQC) e foi a primeira brasileira a integrar o Committee for Skeptical Inquiry (Comitê para a Investigação Cética), comitê fundado nos anos 1970 por nomes como o astrônomo Carl Sagan e que propõe a investigação crítica de alegações pseudocientíficas a partir de um ponto de vista científico responsável.

Para ela, a ascensão do bolsonarismo afetou a pesquisa e a ciência no Brasil de forma sem precedentes. "O desmonte da pesquisa e do campo científico nunca foi tão intenso quanto no governo Bolsonaro, mas ele já existia antes. A falta do investimento em ciência não surgiu na administração bolsonarista. (…) Contudo, nunca houve um governo que se posicionou tão notoriamente contra a ciência e a educação como essa gestão atual, o que representa um problema enorme, porque são as universidades que desenvolvem as soluções, novas tecnologias e que vêm trabalhando na questão da própria vacina contra a doença, em testes de diagnósticos, esse tipo de 'balbúrdia', por exemplo. O bolsonarismo combateu a atuação das comunidades médica e científica com muita ênfase no Brasil durante a pandemia. Basta ver que o ministro de Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes) não entende absolutamente nada sobre o tema da pasta e desperdiça R$ 11 milhões com o teste clínico de um remédio para fazer populismo", afirma a microbiologista.

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Com direito a ampla divulgação pelo governo e cerimônia com presença do presidente Jair Bolsonaro, o antiparasitário Nitazoxanida, vendido no Brasil sob a marca Annita, foi apresentado, na terceira semana de outubro de 2020, no Palácio do Planalto, como um tratamento promissor para a covid-19 no início da infecção.

Esse recurso, nas mãos de uma instituição séria, como o Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas da Universidade de São Paulo, no qual Pasternak atua, seria utilizado de uma forma infinitamente mais produtiva, garante a pesquisadora.

"Nós conseguimos o aporte de R$ 1 milhão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para desenvolver três tipos de vacinas diferentes contra a covid-19. Onze vezes menos para trabalhar as vacinas contra um remédio que todos sabiam que não tinha plausibilidade biológica nenhuma para funcionar. Trata-se de um governo extremamente populista que se utiliza de pseudociência para se promover a qualquer custo", ressalta Pasternak.

Sem qualquer dimensão de responsabilidade ou prioridade, o bolsonarismo não somente deixou de investir em todas as vacinas disponíveis contra a doença, mas ainda atacou a Coronavac reiteradamente, desqualificando o imunizante e incutindo medo na população brasileira.

"A recusa de Jair Bolsonaro em aceitar e muitas vezes até atacar deliberadamente a Coronavac prejudicou o plano vacinal brasileiro. Os ataques do presidente podem não ter afetado propriamente o desenvolvimento da vacina, que foi feito por uma multinacional chinesa em parceria com instituições brasileiras, mas comprometeu muito a imagem da Coronavac junto à opinião pública. Basta ver a última pesquisa apresentada pelo Datafolha, que demonstrou que 22% dos brasileiros sentem medo de tomar qualquer vacina contra a covid-19 – número que já é muito alto para uma população que sempre foi extremamente favorável ao uso das vacinas – e 50% afirmam que têm receio especificamente da Coronavac", pondera a cientista, que destaca a segurança e a eficácia da vacina.

Para ela, a Coronavac "é eficaz e extremamente segura, porque passou muito bem por todos os testes clínicos e foi testada em milhares de pessoas, que foram acompanhadas para a verificação de possíveis reações relacionadas ao uso da própria vacina. Os efeitos colaterais são mínimos, o que é normal considerando que as vacinas elaboradas com base no vírus inativo são muito seguras, geralmente. Trata-se de uma tecnologia simples, que cultiva o vírus inativo, por meio de produtos químicos ou do calor, para que o organismo da pessoa possa desenvolver respostas imunológicas de defesa sem correr o risco de adoecer. (…) Assim são feitas as vacinas contra a gripe e a raiva, por exemplo. É uma tecnologia consolidada, que o Instituto Butantan domina, sabe fazer e é muito confiável".

No que diz respeito às novas cepas, como a de Manaus, por exemplo, Natalia acredita que as vacinas deverão ser eficazes contra as mutações. "Temos poucas informações consolidadas até esse ponto, mas existem estudos epidemiológicos que sugerem que essas linhagens (do vírus) são mais contagiosas. Não sabemos se elas são mais virulentas e agressivas, mas, com certeza, elas parecem ter alguma vantagem na transmissão e isso é esperado quando você tem um vírus circulando livremente em bilhões de pessoas no planeta. Isso acontece porque qualquer vantagem que uma linhagem tenha sobre a outra acaba sendo determinante para que ela prevaleça. (…) Foi o que aconteceu no começo de 2020, quando a D614G, que era uma linhagem que tinha uma mutação na proteína S, tornou-se prevalente no mundo inteiro. Precisamos de ensaios bioquímicos para determinar com certeza se essas novas cepas são mais letais. Isso não depende somente dos estudos epidemiológicos", esclarece.

"Sobre o escape da vacina", prossegue ela, "que é a maior preocupação nesse sentido, os primeiros estudos realizados parecem indicar que as novas cepas não são resistentes às vacinas que nós temos. Houve um trabalho que demonstrou o escape de um anticorpo monoclonal, o que é algo mais específico do que as vacinas. Então, as vacinas deverão dar conta desses mutantes, mas isso também precisa ser testado em laboratório. Uma vacina de vírus inativo, como a Coronavac, por exemplo, tem vantagem de lidar com múltiplos pontos considerando o enfrentamento ao vírus, enquanto as vacinas de vetor ou RNA miram um único alvo, que é a proteína S (proteína da Spike). Com a Coronavac, o alvo é todo o vírus, porque ele está inteiro inativo. Então, caso haja uma mutação na Spike, isso não faz muita diferença para essa vacina, porque ela tem outras partes para atingir. Pode fazer diferença para os outros imunizantes, caso essas mutações sejam muito significativas e alterem muito a estrutura da proteína".

Contudo, as vacinas genéticas e de adenovírus são muito versáteis. É rápido e fácil trocar a sequência genéticas que elas carregam, de acordo com a microbiologista. "Caso surja uma mutação que demande a atualização dessas vacinas, esse processo deverá acontecer em questão de semanas agora. Existem plataformas que conseguimos atualizar rapidamente caso apareça um vírus mutante muito diferente", complementa.

No momento em que entidades como o Conselho Federal de Medicina evitam posicionar-se contra a desinformação promovida pelo Planalto, Pasternak aponta para a necessidade de os pesquisadores participarem da política e estabelecerem pontes com a sociedade. "Os pesquisadores e cientistas não podem ficar calados e achar que as coisas serão resolvidas sem a nossa interferência. É preciso lidar com política. Precisamos nos preparar para isso e estarmos aptos a conversar com a sociedade, com o governo, com o setor industrial. Não podemos nos omitir, porque a ciência não pode ficar restrita aos laboratórios. Precisamos investir em cientistas que façam essa ponte, essa interface com membros do governo, o Parlamento, as empresas e a população".

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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