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Racha no PSL ilustra natureza desarmônica do bolsonarismo

Entendendo Bolsonaro

19/10/2019 13h52

(Crédito: Agência Brasil)

*Igor Tadeu Camilo Rocha 

É notável a dificuldade de acompanhar o assunto que tem tomado centralidade no debate político brasileiro nas últimas semanas: a crise no PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Seria tema de mais alguns artigos para comentar as várias declarações e fatos impactantes, envolvendo do presidente do partido ao da República, passando por vários parlamentares e mesmo ex-filiados à legenda.

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Diante disso, cabem aqui algumas reflexões sobre a crise, em si, do partido do atual governo, e outros elementos tocantes a ela.

Em primeiro lugar, a crise poderia receber diversas adjetivações, exceto a de "surpreendente". Chama atenção o fato de haver, bem difundida entre diversas pessoas e setores, alguma surpresa nos embates que têm sido vistos e amplamente noticiados.

Talvez a surpresa seja decorrente de uma percepção particular sobre o bolsonarismo: a de considerá-lo como uma "seita". Seita, aqui, no sentido que o termo tinha na Idade Moderna, derivado do substantivo latino secta, que a definia como "modo ou gênero (ou filosofia) de vida" e, no Directorium Inquisitorum, escrito em 1376 e republicado em 1578 pelo inquisidor Francisco de La Peña, o qual a definia como aqueles que escolhiam e seguiam obstinadamente algo considerado heterodoxo.

Dito de outra forma, há uma maneira de se ver o bolsonarismo como um grupo que segue uma determinada doutrina univocamente. Tendo a vê-lo, contudo, de maneira diferente: no caso, não como um corpo doutrinal político coeso e coerente, mas como um fenômeno que articula rejeições – às instituições democráticas liberais, como imprensa, universidades, especialistas, partidos tradicionais, etc. – e uma afirmação antissistêmica, que funciona como poderoso catalizador de frustrações, materiais e simbólicas, de uma sociedade periférica no capitalismo tardio – a brasileira.

Dito isso, vejo que o que melhor articula bolsonaristas entre si seja uma prática política, calcada nas rejeições e afirmação mencionadas no parágrafo anterior, somada a um corpo mais ou menos coerente de ideologias pró establishment – ultraliberalismo econômico, maior ou menor conservadorismo social – e, claro, um senso de oportunidade diante das possibilidades abertas na cena política brasileira com a irrupção, em 2013, do acordo que era vigente na vacilante democracia liberal brasileira.

Assim, é possível esboçar duas razões complementares para se pensar a crise no PSL. Episódios como a suposta fusão com o DEM ou a procura de Bolsonaro por uma saída jurídica do PSL e manter algumas prerrogativas deixam claro que existe o interesse no fundo partidário. Este deve ser imenso, uma vez que o partido, "nanico" até as eleições de 2014, experimentou um crescimento vertiginoso nas eleições de 2018 sob a onda conservadora do bolsonarismo.

Não menos importante, citando alguns parlamentares como exemplo, dentre eles o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), passando pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) – um dos cinco deputados suspensos pela sigla – ao deputado Delegado Waldir (PSL-GO) – líder do partido na Câmara, hoje no centro da disputa interna que racha a sigla -, deve-se perguntar como e até quando poderão seguir o fluxo da onda conservadora que levou o bolsonarismo ao Palácio do Planalto.

É possível que algumas figuras vislumbrem na atual crise um momento de se desvincular de um iminente desastre. Também é possível que outras prefiram permanecer e se aferrar mais ao bolsonarismo, apostando vislumbrar novos horizontes dessa mesma onda conservadora nas eleições de 2020. Certamente, também é provável haver incontáveis tons de cinza entre uma posição e outra que somente um exame mais minucioso dos embates que vem acontecendo poderia responder de maneira mais incisiva.

Uma breve conclusão que se pode tomar é que a onda conservadora do bolsonarismo é um campo de disputa de diversos agentes políticos, sendo o PSL parte dele. Uma parte talvez muito menor do que os números de deputados eleitos pelo partido em 2018 pareceu, um dia, mostrar. A legenda PSL nunca pareceu, em si, parte orgânica do bolsonarismo e ele não dá qualquer sinal do contrário.

Uma última consideração é sobre uma visão, a meu ver, irrealista, de parte da oposição sobre a crise no PSL. Há uma narrativa de que a crise, se não derrubará o governo, ao menos significará um entrave significativo para o avanço de sua agenda.

Não parece, entretanto, um cenário muito factível. Esta seria a situação do "melhor mundo possível" na leitura de conjunto de uma oposição que mais resiste do que pauta debates políticos. Isso porque, como dito acima, a prática política e o "mínimo comum ideológico" dos bolsonaristas (e diversos autoproclamados ex-bolsonaristas também) permanecem intactos. O que os desune não são parâmetros ideológicos ou a agenda, mas a disputa pelo ângulo mais favorável para se aproveitar de uma onda conservadora.

Além disso, instabilidades por deficiente articulação de base governista são comuns não somente no Brasil, mas em todos os países que encontram dificuldades e barreiras estruturais para preservar suas instituições democráticas. Porém, tais processos, em algum momento, se estabilizam. Em cenários hipotéticos, o PSL poderia se rearticular internamente, ou mesmo se submeter a uma fusão com outro partido, ou ainda a despeito das legendas haver rearranjos de forças políticas para conduzir determinada agenda.

De toda forma, não obstante os múltiplos cenários possíveis, o fenômeno bolsonarista segue revelando a todos a sua natureza desarmônica e reativa, um misto de rejeição antissistêmica com oportunismo eleitoral. Restam mais três anos. Qual será o futuro?

*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

 

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