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O PT não precisa de autocrítica porque desistiu de disputar voto

Entendendo Bolsonaro

21/11/2019 10h00

(Crédito: Eduardo Knapp/Folhapress)

[RESUMO] Ao ouvir o termo ou qualquer um a ele relacionado, o petismo enxerga na "autocrítica" uma exigência de autoflagelo porque está preso a um passado que não volta mais. O PT acredita que, para o seu retorno triunfal, bastam o fracasso da economia sob Bolsonaro e as saudades do lulismo. Outro erro capital. Mais um que os petistas dificilmente vão admitir.

*Murilo Cleto

Talvez agora já seja tarde demais para pedir calma ao leitor mais apaixonado, mas essa é uma avaliação que faz uma série de concessões às reivindicações mais caras ao PT no momento. Primeiro, "autocrítica" é mesmo um termo um pouco vago demais e que normalmente vem acompanhado de um desejo, nem sempre revelado, de pura expiação pública de pecados – algo raro demais para a classe política.

Segundo, como tem dito o sociólogo Celso Rocha de Barros, a fila da autocrítica cresceu nos últimos anos. De fato, tem bem mais gente agora na lista de brasileiros que precisam de uns minutos no cantinho do pensamento antes de dizer algo como "foi mal aí, erramos feio".

E o impeachment parece ser o exemplo mais bem acabado disso. Tirando Tasso Jereissati, foram poucas as lideranças tucanas que admitiram a burrada que foi destituir Dilma para, depois, dividir o Planalto com Temer e o Centrão. O jornalismo também errou bastante, principalmente ao ser usado como quis a Lava-Jato no meio de uma grave crise política que nem as duas últimas eleições presidenciais resolveram.

Por último – e não menos importante –, é verdade que a crise fiscal que ajudou a mergulhar o Brasil na grave recessão em que ainda se encontra não é exclusividade do governo Dilma. É legítima a reclamação de que, sob a liderança de Eduardo Cunha, a Câmara aumentou gastos públicos com o objetivo de asfixiar o orçamento e colocar a administração petista em maus lençóis.

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Mas a série de injustiças praticadas contra o PT nos últimos anos não pode servir de álibi para o que realmente está na conta do partido. E aqui recomeço pelo fim: o PT votou a vida inteira por pautas-bomba – ou pela elevação do gasto público, como queiram; além disso, pediu inúmeras vezes o impeachment de FHC.

Enquanto governo, o partido tomou conscientemente decisões que, depois, mostraram-se equivocadas. A jornalista Miriam Leitão apontou algumas delas em coluna n'O Globo, depois de Lula dizer, no fim de semana, que o PT não precisava de uma autocrítica.

Grosso modo, Leitão lembrou que o partido transferiu renda para cima e apostou na manutenção de medidas anticíclicas, que deveriam ser pontuais no intento de debelar a crise mundial, para eleger e reeleger Dilma, revogando o próprio legado de redução da pobreza, crescimento econômico e pleno emprego, além da rede de proteção social. Por isso, era fundamental que o PT admitisse erros na condução da política econômica.

Imediatamente, eleitores petistas reagiram com a fúria habitual. Miriam Leitão foi chamada de mentirosa para baixo. E não foram poucos os que disseram que só aceitavam uma autocrítica do PT quando a Globo também fizesse a dela.

É claro que seria importante para o Brasil que a emissora admitisse que errou no tratamento dado às manifestações pró e contra o impeachment e, como eu disse, à Lava-Jato. Mas também não é como se ela fosse candidata nas eleições de 2022. E é nesse sentido que a relação do petismo com a noção de autocrítica pode ser entendida como um sintoma.

O filósofo Vladimir Safatle tem insistido recentemente na hipótese – aparentemente acertada – de que esquerda e direita entraram numa bifurcação em T depois de 2013. E enquanto a direita captou bem o sentimento anti-institucional das ruas e partiu para o caminho da radicalização, a esquerda – então no poder – optou pela preservação dos pilares do sistema.

Isso significa que alternativa de futuro mesmo quem pôde oferecer foi a direita. Até então protagonista na elaboração das narrativas utópicas, a esquerda preferiu defender aquilo que os brasileiros mais rejeitaram.

Não se trata de julgar aqui o mérito dessa escolha. Se o caminho ideal é a radicalização ou a preservação institucional, a conversa é outra. Mas o diagnóstico parece correto. Um dos bons indicativos disso é que uma das principais forças radicais da esquerda, o PSOL, acabou por se tornar cada vez mais próximo do petismo, tornando-se, como diz o próprio Safatle, o curioso caso de uma esquerda radical moderada.

Seja como for, o fato é que enquanto a direita passou a ocupar esse espaço da transformação – ainda que carregado de todas as contradições possíveis –, o que a esquerda tem oferecido é um retorno ao que simplesmente não é mais possível. Não adianta dizer que com Lula era melhor, porque o modelo institucional que sustentou o lulismo foi sepultado.

Então é por isso que, ao ouvir o termo "autocrítica" ou qualquer um a ele relacionado, o petismo enxerga essa exigência de autoflagelo. Porque ele está preso a um passado que, feliz ou infelizmente, não volta mais. Como reconheci no início desse artigo, não tenho dúvidas de que esse desejo de humilhação pública existe e ele não é pequeno. Mas, além disso, há uma necessidade lógica, matemática até, de rever decisões que ajudaram a colocar o Brasil no buraco em que ele está.

Não admitir que o PT tem parte – e grande parte – nessa crise equivale a dizer que o PT só construiu o importante legado de seus governos graças ao boom de commodities. E isso não é verdadeiro. Houve escolhas: algumas muito acertadas; outras nem tanto; e outras tremendamente desastrosas. Admiti-las é fundamental não ao passado, mas ao futuro.

Que "autocrítica" não seja a melhor palavra para descrever esse processo, algo precisa sinalizar ao eleitor que, se voltar ao poder, o PT não cometerá os mesmos erros que cometeu antes. E, nesse sentido, o argumento de que o PT os discute internamente para apresentar soluções reais aos eleitores chega a ser risível, considerando que ninguém é obrigado a adivinhar quais pontos o partido pretende rever.

O escrutínio público é uma condição inerente ao exercício de uma atividade partidária, por razões tão óbvias que soa até um pouco ridículo ter que explicitar. E, com exceção das desonerações e, mais timidamente, das alianças com o MDB, não tem mais nada que o PT possa oferecer de diferente do que foi um dia.

Outro argumento levantado por militantes petistas é que as motivações eleitorais têm se mostrado cada vez menos racionais e que discutir agenda programática não é tão importante assim. Tenho severas ressalvas a essa percepção.

Primeiro porque de certa forma ela infantiliza o eleitor, como se ele não fosse capaz de entender como está sua vida e quem é responsável por isso. Segundo, porque reforça uma tendência muito comum do petismo que é atribuir toda a responsabilidade sobre a vitória de Bolsonaro a fatores externos: as fake news, a Cambridge Analytica, a facada (que pra muitos nem aconteceu), a Lava-Jato, a Globo, etc.

Aí, de novo, parece importante frisar: não é porque esses atores participaram, em maior ou menor grau, do processo de derrocada eleitoral do PT que o partido não tem papel algum nisso. Quem vê de longe pensa que a corrupção, os graves erros na condução política macroeconômica e a estratégia insana de lançar o inelegível Lula não têm nada a ver com isso.

Inclusive o ex-presidente acaba de anunciar que deve repetir esse plano eleitoral de 2018 no próximo pleito. Eis um exemplo, grátis e em tempo real, do que a ausência de autocrítica pode fazer não com o passado, mas com o futuro.

E é justamente esse futuro que o PT precisa voltar a oferecer para as pessoas se quiser voltar a ganhar uma eleição. Trata-se de um erro monumental acreditar que o triunfo do bolsonarismo significa apenas o fracasso da centro-direita que vinha sendo representada pelo PSDB.

O PT perdeu no ABC, perdeu nas periferias das grandes cidades. O PT tem uma representação tremendamente frágil entre os trabalhadores dessa nova configuração do capitalismo. O modelo sob o qual o partido se construiu não existe mais. Entender isso é também voltar a vislumbrar o futuro.

Mas isso vai ser difícil enquanto o PT continuar achando confortável segurar esse terço do eleitorado que até aqui não desistiu dele – e que provavelmente não desistirá mais. Lula sabe que é muito difícil para a esquerda articular uma alternativa, e que talvez seja tão difícil quanto para a direita substituir Bolsonaro, pelo menos enquanto parte substancial do mercado estiver na canoa Guedes. Esse cenário gerou um ciclo vicioso em que mais importante do que alcançar divergentes é reforçar o engajamento dos simpatizantes.

E a dinâmica das redes polarizadas, onde as performances contam muito, contribuiu para tornar as posições eleitorais inconciliáveis. Humilhar bolsonaristas arrependidos na internet é só uma das muitas evidências de que os petistas não estão muito interessados em disputar voto, justamente porque essa disputa não mira o futuro, mas o passado. Então, nesse caso – e só nesse caso –, a autocrítica realmente parece não fazer muito sentido.

Assim como para Bolsonaro é confortável ter o PT como centro gravitacional da oposição, para o petismo é bom ter Bolsonaro na presidência. As razões para isso já foram exaustivamente debatidas. A questão é que o PT parece acreditar que, para um retorno triunfal do partido, bastam o fracasso da economia sob Bolsonaro e as saudades dos anos de ouro do lulismo. Outro erro capital. Mais um que os petistas dificilmente vão admitir.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural e mestre em Cultura e Sociedade. É também pesquisador das novas direitas, professor, escritor e palestrante.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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