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Hiroshima é aqui: silêncio, vergonha e humilhação

Entendendo Bolsonaro

08/08/2020 14h10

(Crédito: Fábio Motta / Agência O Globo)

* Sidarta Ribeiro

Façamos um segundo de silêncio por cada uma das cem mil brasileiras e brasileiros que perderam a vida em decorrência da covid-19. Serão mais de 27 horas de tristeza emudecida, multiplicada pelas redes de afetos despedaçados de cada pessoa que nos deixou. Se optarmos por seguir o minuto protocolar, serão mais de dois meses sem abrir a boca, no silêncio envergonhado de quem não conseguiu impedir o pior.

Em 1945, a primeira bomba atômica a ser usada numa guerra carbonizou um terço da população da cidade japonesa de Hiroshima, cerca de oitenta mil pessoas desaparecidas repentinamente. O fracasso do enfrentamento da covid-19 no Brasil já é maior do que o desastre de Hiroshima.

A humilhação é máxima porque o pior aconteceu e segue acontecendo, apesar de todos os avisos que tivemos. Há muitos anos a ciência vem alertando repetidamente sobre o perigo iminente de um vírus contagioso, letal e transmitido pelo ar, como foi o caso do SARS-CoV-1 em 2003, predecessor direto da peste atual.

Quando ainda era presidente dos EUA, Barack Obama se comprometeu com o financiamento das pesquisas que poderiam ter nos valido uma vacina eficaz neste momento. Mas sobreveio o governo Trump e seu completo desprezo pelas instituições multilaterais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), que os EUA se preparam para abandonar em breve. A ciência passou a ser ameaçada pela redução de financiamento e mesmo os poderosos EUA se viram despreparados quando a SARS-CoV-2 chegou.

Para entender a enormidade de nossa vergonha e estupidez, é preciso compreender que os alertas não vieram apenas de cientistas, com seus jalecos brancos e palavras difíceis. Lideranças de povos originários de todo o planeta, caciques e pajés ameríndios à frente, alertam há séculos para a urgência de reconhecermos os riscos letais de nosso contato predatório com a natureza. O avançado estado de putrefação da autodenominada "civilização" vem sendo sistematicamente denunciado por humanos de sabedoria e visão, como o xamã Yanomami Davi Kopenawa.

Infelizmente, tem sido em vão. O leviatã capitalista só entende o perigo depois que ele se instala completamente – ou nem mesmo assim. O caso do Brasil é ainda mais trágico do que tantos outros, pois tivemos ampla oportunidade de preparação. A pandemia se espalhou pelo mundo do leste para o oeste, dando ao continente americano uma vantagem de cerca de dois meses para levantar as fronteiras sanitárias, organizar a quarentena e planejar medidas que evitassem o caos. Mas diante da possibilidade de uma reação racional e compassiva, fizemos tudo errado. Enquanto Bolsonaro estava em queda de braço com seu então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o Brasil desperdiçou toda a vantagem que tinha.

Não implementamos como deveríamos a testagem sistemática, o rastreio dos infectados e a ampliação da capacidade de internação com tratamento intensivo. Em nenhum momento o governo chegou a cogitar descontingenciar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), cerne dos recursos para investimento em ciência no Brasil, congelado em cerca de 90% durante todos os insuportáveis 20 meses do desgoverno atual. Sob a tutela de militares amantes de cargos comissionados mas totalmente despreparados para a realidade de uma epidemia, fomos para a guerra viral sem planos, sem armas e sem munição.

E então, para agregar insulto à injúria, quando a foice da morte finalmente chegou com sanha implacável ao país, deparou-se com o esforço evidente do presidente em negar o vírus e assim espalhá-lo melhor, em ajuntamentos populares duplamente abjetos – pela promoção do contágio e pela militância antidemocrática neofascista. A recusa em utilizar máscaras e frases como "vida que segue" pautaram na mídia o despudorado cinismo federal com a vida.

Nada ilustra melhor o descalabro do que a situação atual do Ministério da Saúde (MS). Comandado por um general ignorante em medicina mas sobretudo desprovido de qualquer empatia pelo sofrimento alheio, o MS trata os cidadãos como o exército brasileiro tratou seus soldados nas poucas guerras de verdade em que se meteu: como bucha de canhão.

Há poucos dias, Eduardo Pazuello declarou ao lado de Bolsonaro que é bom já irmos nos acostumando, pois o Sars-CoV-2 veio para ficar, assim como o vírus HIV.

Impossível explicar ao antiministro do anticristo que evitar os contágios por HIV requer apenas uma campanha governamental bem-sucedida em promover o uso de preservativos e seringas descartáveis – coisa que o governo brasileiro fez com excelência por décadas, mas que retrocedeu no governo atual.

Impossível explicar a esses humanos anti-ideias que se o HIV fosse transmitido pelo ar estaríamos em situação calamitosa. Como Bolsonaro explicitou na mesma ocasião, eles só querem "se safar". Escapar da enorme responsabilidade. Safados.

É claro, entretanto, que a culpa não é apenas de Bolsonaro e seus asseclas incompetentes e sádicos. As 100.000 pessoas que já não respiram nem amam são crime doloso de todos e todas que fizeram coro delirante com o analfabetismo científico do governo federal.

Na politização estúpida de uma questão de vida ou morte, no oba-oba supersticioso e raso de quem se acredita imortal e pouco se importa com a contaminação alheia, na brutalidade de nossas relações anti-povo, desperdiçamos as inúmeras oportunidades que tivemos de esquivarmos coordenadamente da primeira onda de contágios. Fracassamos enquanto nação e por isso estamos recebendo a explosão da granada viral com a cara aberta da boçalidade e o peito mofado de incivilização.

Nossa falência moral e intelectual é tão profunda que se torna quase impossível reagir ao risco de que toda essa mortandade seja apenas o começo da catástrofe.

A pandemia está no início do fim, ou no fim do início? Virá a segunda onda ou será ainda pior, apenas uma imensa e longa primeira onda que ainda irá destruir milhares de vidas e seguirá triturando o tecido social e econômico do país? As 100 mil covas abertas e fechadas às pressas são o número do dia, nada mais. O céu segue desabando e o limite dessa queda é sete palmos abaixo do chão. Pense nisso quando estiver aplaudindo o presidente.

* Sidarta Ribeiro é neurocientista e escritor, autor de O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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