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O inferno é o limite

Entendendo Bolsonaro

09/08/2020 12h25

A Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, foi palco de um protesto em memória das mais de 100 mil vítimas da covid-19 (Crédito: Reprodução)

* Renato Janine Ribeiro

Era para serem "oitocentas" as vítimas brasileiras da "gripezinha", disse em março o presidente Bolsonaro. Chegaram agora a cem mil. Há dois meses, estão acima de mil por dia, sem sinal de arrefecimento. O céu, ou o inferno, é o limite.

Enquanto isso, o governo federal continua sem fazer o que deve – na saúde, mas também na educação, séria vítima da pandemia, porque as escolas particulares ainda conseguiram improvisar um ensino remoto emergencial, mas a enorme rede pública, com perto de 40 milhões de crianças e adolescentes, não teve êxito nisso. Falta banda larga, falta equipamento para os alunos, falta espaço para eles seguirem as aulas em suas casas, falta bom senso a secretarias que mandam alunos pobres imprimirem material que recebem por e-mail – sem que eles tenham dinheiro para isso.

E isso enquanto secretários de Saúde e Educação, assim como o pessoal dessas duas áreas, dão o melhor de si para enfrentarmos a pandemia – sem nenhum apoio, sequer verbal, do governo brasileiro. Estados e municípios, assim como os cidadãos, estão entregues a si mesmos. Mas não vou insistir no que é óbvio. Quero elaborar um pouco como o Brasil, país que era amado e às vezes admirado, se tornou, nas palavras de um amigo outro dia no Facebook, uma nação da qual hoje se tem pena.

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Penso que uma forma de tratar deste assunto é dizer: a Constituição foi e está sendo destruída. Em 1988, o Brasil aprovou sua primeira Carta a dizer o que o país quer ser. Está já no começo do documento. As Constituições anteriores, como a norte-americana e muitas outras, começavam pelo funcionamento do Estado. O cidadão entrava no final. Importava o Estado, mais que o país, a nação ou o povo.

Thomas Jefferson condicionou a ratificação da Constituição norte-americana pelos Estados componentes ao compromisso de imediatamente se adicionar a ela uma declaração de direitos. Foram doze emendas aprovadas em 1789, das quais dez compõem o Bill of Rights, documento histórico (duas não foram ratificadas e não entraram em vigor). Em nossa Constituição de 1946, os direitos dos cidadãos estavam apenas no artigo 141. E ela não dizia o que o Brasil queria ser.

Hoje, nossos direitos estão no art. 5º. Nos anteriores, se afirma que o Brasil quer ser uma sociedade justa, sem miséria, que nas relações internacionais buscará a paz e além disso a integração latino-americana.
Tudo isso tem sido violado impunemente estes anos. Recentemente, ex-ministros das Relações Exteriores, dos mais variados governos, assinaram documento elencando como o art. 4º, que trata de nossa politica internacional, está sendo sistematicamente agredido pelo governo atual. O Supremo, nem tchans.

Se lermos os artigos 1º a 12 da Constituição, e depois os capítulos que tratam da seguridade social, da saúde, da previdência e assistência sociais, da educação, cultura, ciência, tecnologia e inovação, da comunicação, do meio ambiente, da família, da criança, adolescente, jovem e do idoso, bem como dos índios (arts. 194 a 232), veremos centenas de princípios éticos pelos quais o Brasil se propôs a viver. Isso sem contar que, na estrutura do Estado, de que se ocupam os trechos entre o princípio e o final da Constituição, também pretende-se fazer que o País seja uma comunidade de gente vivendo bem, e esse "bem" não se refere apenas a dinheiro, mas à ética.

E não é apenas a Constituição, também as leis estão sendo descumpridas. A Fundação Palmares, criada para promover a cultura e a dignidade negras, é chefiada hoje por uma pessoa que odeia Zumbi dos… Palmares. Na Casa de Rui Barbosa se aposenta uma intelectual de primeira, e a presidente da entidade nem toma conhecimento. As leis que criaram fundações, museus, universidades, hospitais são claras. Visam à cultura, à educação, à saúde, à ciência. Mas tudo isso pode ser descartado sem que as instituições, que mídia e alguns analistas políticos cantam em prosa e verso, tujam ou mujam. Hoje, o Brasil é o paraíso do descumprimento da Constituição e da lei. O que equivale a dizer: é o inferno da ética.

Quando e como começou essa distopia? Penso que foi com o impeachment de Dilma Rousseff. Sei que parte dos leitores não gostará do que digo. Mas, se havia base política para tirá-la – ela perdera a liderança e mesmo a popularidade –, não havia elementos jurídicos sérios para tanto. Assim como a condenação e prisão de Lula não tinham sustentação nas leis ou na jurisprudência. A Vaza Jato provou isso plenamente, a começar pelos vínculos entre os acusadores e o julgador de Lula, o que é inaceitável em qualquer país decente.

Afirmei, quando Lula foi impedido de concorrer à presidência pela decisão política de um juiz, que nos nivelávamos à Malásia, onde o chefe do governo, ao se ver ameaçado de perder as eleições por um antigo colaborador, precipitou sua condenação à prisão (no caso, por suposta sodomia, crime naquele país). Ou a outros países em que o Judiciário impediu favoritos de disputar eleições.

Em quase todos esses casos, nosso Judiciário se omitiu. O Supremo Tribunal Federal de vez em quando restabelece a Constituição, como quando voltou a admitir que só após o trânsito em julgado das sentenças é que elas devem ser sistematicamente aplicadas. (Lembrando: uma pessoa pode ser presa mesmo depois da condenação em primeira instância – aliás, muita gente está presa sem mesmo estar sendo processada – mas uma coisa é ela poder ser presa, por várias razões a critério do Judiciário, outra é ela ter de ser presa. O que o STF admitiu, antes da eleição presidencial, é que fosse obrigatório prender os condenados em segunda instância, descumprindo a Constituição. Quando Bolsonaro já estava eleito, soltou Lula e muitos outros que, mais tarde, serão absolvidos em instâncias superiores (e o que farão? Pedirão indenização pela prisão injusta?).

Isso tem a ver com as cem mil mortes? Seguramente. Porque a própria existência de um Ministério da Saúde somente se justifica pela proteção da vida e do bem-estar da população. Se ele não divulga dados, não lidera os esforços dos entes subnacionais, descumpre seu papel. Preceitos fundamentais estão sendo deixados de lado com a maior facilidade. E assistimos a tudo isso, como diria Aristides Lobo, bestializados. Ainda mais porque a revista piauí acaba de narrar, com profusão de detalhes, uma decisão de fechar o STF tomada pelo presidente e que falhou por pressão de seus generais – e o Executivo não desmente, e os outros poderes não reagem, fazem-se de desentendidos. Como isso?

Há valores que estão acima de nossas divergências. Como disse Felipe Neto, não são questão de política, mas de humanidade. A vida está acima de pequenas considerações políticas (é óbvio que um político que faz da arminha seu símbolo não gosta da vida, pelo menos da dos outros…). Uma Constituição é para ser cumprida por qualquer partido, de direita ou de esquerda. Os meios de implementá-la serão diferentes, mas ela tem de ser obedecida. Devemos, na mídia, nas redes sociais, no Congresso e no Judiciário, exigir isso.

* Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação (2015)


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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