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Bolsonarismo renega a nação e se faz de colônia dos EUA

Entendendo Bolsonaro

21/09/2020 10h40

(Crédito: Reprodução/Twitter)

Vinícius Rodrigues Vieira 

Um domínio pode ser entendido como um território autônomo do ponto de vista da política interna, mas com a diplomacia e defesa definidos por um Estado soberano. Tal definição cai como uma luva para o rumo que o Brasil segue sob o bolsonarismo na sociedade internacional. A visita do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a Roraima — estado que faz fronteira com a Venezuela, cujo governo autoritário foi atacado pelo visitante — corrobora a percepção de que o governo Bolsonaro não está apenas submisso aos desígnios de Washington.

Isso porque a atual administração busca, na prática, terceirizar a política externa, colocando-a a serviço de um outro país. Pompeo esteve em instalações da Operação Acolhida, responsável por receber migrantes venezuelanos que fogem do autoritarismo e penúria impostos por Nicolás Maduro. No futuro, portanto, não será surpresa se, continuada esta toada, o governo Bolsonaro for descrito por historiadores e demais estudiosos de questões internacionais como aquele que converteu o Brasil em domínio dos EUA, uma relação colonial.

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Não foi, portanto, inapropriadamente que ex-chanceleres do pós-ditadura, à esquerda e à direita, apoiaram a dura e necessária nota do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), condenando a recepção do atual titular do Itamaraty, Ernesto Araújo, a Pompeo.

Assinado pelos ex-chanceleres Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, o texto de desagravo a Maia diz que ele "foi o intérprete dos sentimentos do povo brasileiro ao constatar que tal visita, no momento em que faltam apenas 46 dias para a eleição presidencial norte-americana, não condiz com a boa prática diplomática internacional e afronta as tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa". O mal estar causado pela visita é tamanho que Araújo foi convocado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado para prestar esclarecimentos, na quinta-feira (24).

A união de antípodas como Amorim (chanceler de Itamar Franco e Lula) e Lafer (chanceler de Collor e FHC) sinaliza a necessidade de um projeto comum para barrarmos a visão neocolonial que Araújo, com o respaldo ostensivo de Bolsonaro, projeta ao Brasil e reiterou ao criticar Maia. Por mais que, como diz o presidente, seja necessário restaurar a democracia na Venezuela, tal processo não deve ser feito por imposição externa. Seus custos — a instabilidade constante do Oriente Médio está aí para nos provar — são altíssimos e abririam espaço a um eventual conflito militar, no qual teríamos grandes dificuldades perante as tropas de Maduro. Derrotados, cairíamos de vez no colo dos americanos.

De fato, mais que relegar o Brasil ao status de domínio americano, o governo Bolsonaro pode acabar nos transformando num eventual protetorado, termo aplicado a países que, em troca de determinadas obrigações, também cedem sua política externa e de defesa a uma potência, embora formalmente retenha sua soberania. Acredito, porém, que o termo domínio cabe melhor na situação atual, pois nossa defesa ainda está oficialmente em nossas mãos, não obstante a crescente preferência entre os militares pela manutenção da aproximação com os EUA como forma de se contrapor à ascensão chinesa, a qual — conforme já tinha argumentado neste espaço demandava, sim, uma reação brasileira, mas não nos moldes atuais. Qualquer aliança diplomática e militar tem de ampliar a soberania da nação em vez subjugá-la. Caso contrário, é melhor manter o status quo.

Ademais, o termo domínio remete ao status original do Canadá, no Império Britânico. Diferentemente da Índia, por exemplo, as terras ao norte dos EUA não eram uma colônia, mas recebiam até o começo do século XX o status de domínio. O projeto Correlates of War, talvez a maior referência dos estudos quantitativos sobre segurança internacional, considera o Canadá independente de fato apenas a partir de 1920, embora o país remeta a 1867 sua formação e soberania.

De todo modo, o Canadá era visto como domínio — e não um protetorado ou colônia de fato — porque seu território tinha sido ocupado — ou, diríamos sob o ponto de vista dos povos nativos, invadido — por colonos britânicos, à exceção das áreas colonizadas por franceses, notadamente a atual província de Quebec. Ou seja, tais colonos eram claramente uma extensão político-cultural da sede do império onde o sol jamais se punha.

De maneira bizarra, o bolsonarismo nos enxerga assim: uma extensão político-cultural dos EUA dada nossa maioria cristã de mais de 80% da população — dos quais uma crescente parcela é evangélica—, além da inegável herança europeia. As semelhanças param por aí, haja vista óbvias diferenças nos legados do velho continente. Enquanto o mainstream estadunidense ainda ecoa o ideário WASP — sigla para branco, anglo-saxão e protestante —, nossas elites são filhas das tradições ibérica e católica que, na hierarquia europeia pós-Reforma e pós-Revolução Industrial, estaria material e simbolicamente abaixo dos europeus do norte.

Isso, claro, para não lembrar do óbvio: somos um país de maioria mestiça e/ou negra, diferentemente dos EUA, onde brancos perfazem mais de 60% da população. No 7 de setembro, Bolsonaro celebrou nossa mestiçagem. Porém, isso não significa reconhecimento da nossa diversidade, tampouco a reinvenção de nossa identidade nacional. Pelo contrário, trata-se de uma não identidade, sem qualquer lastro histórico, sem um projeto de nação — apenas de subordinação a um ideal civilizatório — estadunidense — que tampouco existe.

De todo modo, Bolsonaro busca um "branqueamento" do Brasil ao enfatizar que seu governo é cristão, tal como ocorreu na reunião com líderes evangélicos, divulgada em vídeo ao som de Hallelujah, canção do poeta canadense de origem judaica Leonard Cohen, que, metaforicamente, descreve uma relação sexual-amorosa.

Poderia ser estranho. No entanto, este é o novo normal no país que, conforme já tinha previsto em artigo anterior, sufoca a si mesmo ao renegar suas heranças africana e indígena, mas cujo presidente celebra em churrasco o dia da Revolução Farroupilha (20 de setembro), transformado em Dia do Gaúcho. Não se condena aqui as datas magnas estaduais e regionais, mas causa espécie um presidente que se diz patriota comemorar uma data que lembra eventos que, se bem-sucedidos, teriam levado à fragmentação da pátria.

Até porque, salvo grande equívoco da imprensa, Bolsonaro não fez qualquer menção, por exemplo, às celebrações de 2 de julho — dia em que a Bahia comemora a expulsão definitiva dos portugueses, em 1823, no pós-independência. A data magna dos baianos — população que, proporcionalmente, é a mais negra do Brasil — passou batida na live do presidente, neste ano, naquele dia. Em contrapartida, dois dias depois, em 4 de julho, estava Bolsonaro na embaixada dos EUA, em Brasília, comemorando a independência do país do qual, segundo o presidente, não devemos apenas ser espelho, mas servos incondicionais.

Pensando bem, Bolsonaro é o farrapo do século 21 — no século 19, a cobrança de impostos pelo comércio de charque, no Império, motivou a revolta gaúcha. Em campanha, o presidente prometia combater o excesso de impostos. Uma vez no poder e sob o manto de uma pretensa liberdade, oferece apenas um elitismo mais rígido que aquele ao qual diz se opor.

Convenientemente, Bento Gonçalves — líder-mor dos farrapos — e companhia faziam vista grossa à escravidão na breve República Rio-Grandense e teriam financiado a guerra com o tráfico de escravos. Se suas estátuas fossem derrubadas não fariam falta alguma. Nem mesmo o argumento de que, bem ou mal, foram construtores da nação — empregado por aqueles que defendem incondicionalmente os bandeirantes e inconfidentes mineiros — se sustenta em sua defesa.

Sem um sentido claro de nação — entendida como uma comunidade de iguais independentemente da origem étnica e credo —, estamos condenados a ser, na prática, uma colônia ou um domínio. Ouvindo Cohen numa oração evangélica em vez do sincretismo expresso nas missas afro-brasileiras pela trilha de Missa dos Quilombos, composta sob a liderança de Milton Nascimento, e o Canto das Três Raças, de Paulo César Pinheiro, bolsonaristas devem se sentir, assim, no Canadá — ou seja, no primeiro mundo. E a distopia brasileira, então, atinge níveis inimagináveis.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


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