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Entendendo Bolsonaro

Já ouviu falar em intoxicação de informação? Você é uma vítima?

Entendendo Bolsonaro

28/02/2019 17h42

(Crédito: Emoji One/Wikimedia Commons)

Rodrigo Ratier*

Até recentemente, a Folha de S. Paulo publicava, todo dia, a programação dos canais de TV. Tarefa não exaustiva, como se vê num exemplo de 2006: eram 7 as emissoras abertas em VHF e 6 em UHF. Quem quisesse se aprofundar na busca por notícias poderia recorrer a jornais, revistas e o velho e bom rádio, na AM e na FM. A TV por assinatura já era uma opção, assim como o mundo digital, em portais como o UOL e redes sociais como Orkut e Facebook, ambos inaugurados em 2004.

A onda de informação se expandia, mas ainda era uma marolinha se comparada ao tsunami de opções atuais. Segundo o Internet Live Stats, são 1,7 bilhões de sites; 2,4 bilhões de usuários do Facebook e algo como 4,1 de internautas no mundo. Quem consome também produz informação – fenômeno sintetizado pelo futurista Alvin Tofler no neologismo prossumidor (no inglês, prosumer). Pouco surpreendentemente, as fronteiras entre o jornalismo profissional e outras formas de veiculação de informações evaporaram.

Na política, quem entendeu rapidamente essa lógica tem levado vantagem. Trump e, depois, Bolsonaro, posicionam suas redes como concorrentes dos meios tradicionais de comunicação. Num uso retórico do termo fake news para qualquer informação que os desagrade, alimentam a crise de credibilidade da imprensa e desqualificam denúncias sem a necessidade de rebatê-las. Já eleito, o presidente brasileiro chegou a sugerir no Twitter perfis opinativos, alinhados com a direita, como "excelentes canais de informação":

Chegamos, assim, a uma situação paradoxal. Nunca na história da humanidade as pessoas tiveram acesso a tanta informação. Mas a quantidade não se transformou em qualidade: não são poucos, também, os que sentem que nunca estiveram tão mal informados. O que explica a aparente contradição?

Um grupo de pesquisadores espanhóis, liderados Luis Miguel Romero-Rodríguez, da Universidade Internacional de La Rioja, apostam no conceito de infoxicação para dar conta do fenômeno. É, novamente, um neologismo, junção das palavras intoxicação e informação. O paralelo com a alimentação é válido: na abundante feijoada informativa oferecida em tempo real, estaríamos escolhendo ingredientes de baixa qualidade, que prejudicariam nossa vida.

Um exemplo já clássico do campo político são as fake news criadas por grupos de jovens na Macedônia durante as eleições americanas de 2016. As mentiras viralizaram e geraram um bom dinheiro – via banners publicitários exibidos na plataforma Google AdSense. Para ficar na metáfora gastronômica: internautas dos Estados Unidos engoliram um carregamento de abacaxis estragados transportados por um caminhão sem placa.

O impacto dessa sujeira diluída em meio à informação de qualidade não está totalmente esclarecido. Não se pode cravar, com certeza, o grau de influência da desinformação e das notícias falsas na decisão de voto, por exemplo. Há, porém, correlações mais bem documentadas em pesquisa. Efeitos individuais ou sociais como radicalização, desprezo pelos fatos, dificuldade de concentração e socialização, fechamento epistêmico (o confinamento em uma "bolha" de mensagens que reforçam nossas opiniões), violência simbólica e real. Para Romero-Rodríguez e equipe, a situação é grave porque a infoxicação não seria um desarranjo passageiro, mas teria se tornado o novo normal no ecossistema informativo.

Se fake news e desinformação se referem sobretudo à produção, a infoxicação se manifesta no polo oposto, o do consumo de informações. Seus ingredientes, contudo, estariam espalhados em todas as etapas do ato comunicativo. O imediatismo geraria informações menos qualificadas (no polo da produção) e menor tempo de reflexão (no polo do consumo). A sobressaturação – outra expressão feliz dos pesquisadores, a indicar algo como a hiper-hiperinformação – seria a condição padrão dos canais de comunicação. Basta pensar, por exemplo, nas timelines infinitas de Twitter, Instagram e Facebook. Ou na tempestade incessante de mensagens dos grupos de WhatsApp. E a desinformação – termo aqui usado como sinônimo de informação pouco comprometida com a veracidade, o que inclui fake news e outras fraudes – apareceria como condição estrutural. Ou seja: todo o ambiente em que nos informamos seria formado por uma cozidão em que é difícil separar as informações confiáveis das que não são.

Mas um contexto comunicativo poluído e a produção de mentiras seriam um distúrbio de menores dimensões se as pessoas soubessem identificá-los. Recorrendo novamente ao paralelo gastronômico, evitamos intoxicações por alimentos quando sentimos um cheiro esquisito, notamos alterações no gosto, textura e cor. Aí, simplesmente não comemos a comida estragada. No caso das informações, a infoxicação é mais recorrente porque as audiências não estão preparadas para separar o joio do trigo. Amante de neologismos, Romero-Rodríguez qualifica os usuários como analfanautas – algo como "internautas analfabetos".

Para os pesquisadores, combater o analfabetismo digital seria o caminho ideal para reduzir a infoxicação. Entender as condições de produção da notícia, reconhecer os marcadores mínimos que diferenciam notícia e opinião, guiar-se pela necessidade de evidências que amparem os fatos são algumas das competências que precisam ser desenvolvidas.

A ideia não é responsabilizar apenas a vítima: Romero-Rodríguez e equipe reconhecem que as pessoas não conseguem decodificar esses elementos porque nunca foram ensinadas a fazê-lo – há pouquíssimo espaço para a alfabetização midiática na escola. Mas há coisas que podem ser trabalhadas individualmente. Por exemplo, a maturidade de se desconectar de tempos em tempos. Para quem come mal e quer emagrecer, fazer exercícios e fechar a boca de vez em quando pode ser a saída. Um raciocínio parecido – selecionar melhor o que se lê e guardar um período off-line para a reflexão – são alternativas quando a meta é melhorar a dieta informacional.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

* Rodrigo Ratier é jornalista e professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Doutor em Educação pela USP, assina o blog Em Desconstrução, também no UOL

Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

Sobre o Blog

Uma discussão serena e baseada em evidências sobre a ascensão da extrema direita no mundo.