Jair Bolsonaro: uma guinada antidemocrática?
*Rafael Burgos e Camila Rocha
"O poder popular não precisa mais de intermediação".
Em tempos recentes, seria natural associar discursos do tipo a figuras políticas que habitam movimentos sociais, sindicatos, grupos de pressão ou partidos considerados bem à esquerda do espectro.
Ocorre que o autor da frase acima é Jair Bolsonaro, por ocasião do seu discurso na cerimônia de diplomação, realizada no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em dezembro passado.
O bolsonarismo é um fenômeno político que não se esgota no anti-petismo e no anti-esquerdismo, na medida em que se apoia, principalmente, em uma lógica de ruptura. Seu governo, imbuído da missão de realizar os desejos de um eleitor cansado e desiludido com as instituições, incorpora um ethos antissistema.
Compreender isso é essencial para analisar o fenômeno eleitoral que lhe deu vitória, e que segue determinando as ações do Planalto.
Mas quando falamos em ruptura com o sistema, do que estamos tratando exatamente?
Acaba de chegar ao Brasil, editada pela Companhia das Letras, a obra "O povo contra a democracia", de autoria de Yascha Mounk, cientista político germano-americano. Nela, Mounk se encarrega de analisar a crise do modelo de democracia liberal que vive hoje o Ocidente.
Para Mounk a democracia liberal seria a tentativa de conjugar, num mesmo sistema político, a tomada de decisão pelo povo através de seus representantes (democracia) com uma ampla garantia de direitos individuais, preservada por instituições independentes (liberalismo político).
Há 30 anos, com o fim da Guerra Fria, triunfavam os valores ocidentais que depositavam uma confiança desmedida nesse modelo. Com o fim do mundo bipolar, sobressaía no horizonte o aparente "estágio final" de um processo político que, enfim, tenderia a alguma estabilidade.
Foi nessa época, precisamente no ano de 1989, que o filósofo nipo-americano Francis Fukuyama cravou a famosa expressão "fim da história". Em sua visão, a democracia liberal que se consolidava seria o último capítulo de uma longa jornada em busca da melhor forma de governo para o homem: não haveria mais alternativas viáveis ao modelo que prevalecia.
Não durou muito.
As últimas décadas, terrivelmente imprevistas, nos legaram um vácuo político-institucional de ampla escala. O mundo vive hoje uma crise de representação política simplesmente impensável há 30 anos.
Mas onde entra o bolsonarismo nessa história?
Ao dizer que o povo não precisa mais de intermediação, qual perspectiva de democracia Jair Bolsonaro transmite ao cidadão brasileiro?
Vencer eleições requer um discurso adequado àquilo que o eleitor do momento deseja ouvir. E, no Brasil, Jair Bolsonaro liderou uma mobilização política de massa, apoiada no uso intensivo das redes sociais e com a ambição de superar o modelo político que entrava em crise.
Sua comunicação, direta, franca e sem rodeios, criou a perspectiva de aproximar o cidadão do poder. A proximidade estaria assentada não apenas em certos valores em comum, mas sobretudo na perspectiva de redução de um imenso ruído que se dava entre representante e representado.
Se democracia, nos lembra Mounk, é, em princípio, tomada de decisão pelo povo, Bolsonaro venceu ao prometer uma redução do déficit democrático, e não o contrário.
Mas o bolsonarismo não venceu sozinho. O fenômeno sucedeu alguns acontecimentos importantes da política brasileira, sem os quais seria quase impossível tal diálogo com o eleitor.
A campanha de Jair Bolsonaro captou o Zeitgeist resultante dos protestos de junho de 2013, da Operação Lava-Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, conferindo-lhes organicidade, de modo que os três episódios tornam-se parte de um mesmo todo: a reação brasileira a uma crise de representatividade que encontra eco em outras partes do globo.
Se a crise, segundo Mounk, se daria sobretudo devido à impossibilidade de reunir os dois valores máximos, democracia e liberalismo político, num só modelo, a sociedade teria de optar por um caminho.
E, aqui ao menos, ela decidiu.
Ao longo do processo político contemporâneo o cidadão brasileiro expressou um desejo inconteste de se aproximar do poder, ainda que isto implicasse menos garantias individuais. Em junho de 2013, após manifestações menores e esparsas iniciadas em 2011, o recado começou a ser dado.
Fenômeno difuso e ainda objeto de interpretações bem distintas, resta claro ao menos o consenso de que as manifestações de junho acenderam o alarme, explicitando de modo inequívoco o caminho elitista e pouco democrático que o poder político vinha trilhando.
Na obra "Ruptura", publicada no Brasil ano passado, o sociólogo catalão Manuel Castells alerta os que, assim como Fukuyama, enxergavam o atual modelo democrático como infalível: "a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas".
Esse foi o grande recado dado em 2013. Emergia um enorme vácuo. Um grito contra o esquecimento havia sido dado. O recado foi solenemente ignorado pela classe política e parte dela jamais recuperou a popularidade após os protestos.
É a partir deste cenário que o segundo grande fenômeno da rebelião brasileira entrava em cena: a Operação Lava-Jato.
Devastando parte significativa da classe política, a força-tarefa materializava o que o diagnóstico de Mounk revelou: a transformação do déficit democrático em superávit implicaria sacrificar um já problemático Estado de Direito.
O populismo penal lava-jatista oferecia uma troca que, no momento, parecia muito vantajosa: mais vontade popular, menos garantias a políticos corruptos, ainda que estas sejam, em essência, as mesmas garantias dos cidadãos honestos.
Talvez nem mesmo Mounk tenha sido tão didático como foi Carlos Fernando, ex-procurador da Força-Tarefa da Lava-Jato, que, em entrevista ao Estadão em fevereiro de 2017, disse, em resposta a críticas de que os investigadores estariam desrespeitando os direitos individuais dos investigados:
"A interpretação excessiva desses direitos individuais é que tem causado a impunidade no Brasil. Temos que fazer um balanço entre a necessidade que a sociedade tem de punir esses crimes com o direito das pessoas."
Bingo.
Ao mostrar-se fiel ao anseio popular de ocasião, precisamente o "combate à impunidade", e não à Constituição e às leis brasileiras, que não admitem qualquer "balanço" de tais direitos, a Operação Lava-Jato dizia à sociedade: ou seguimos a letra da lei ou fazemos a "vontade das ruas" prevalecer.
Assim, os procuradores – e Deltan Dallagnol, coordenador da Operação, nunca fez o mínimo esforço para que pensemos diferente – atribuíam a si uma missão não de Estado, mas de vanguarda. Uma vanguarda democrática em defesa do povo contra os poderosos.
Pois bem, quem viria a dar prosseguimento a essa cruzada?
Em meio ao pânico instalado no sistema político por conta das baixas efetuadas pela força-tarefa, ocorreu a reeleição de Dilma Rousseff.
Apenas seis dias passados da vitória da petista, militantes reunidos em torno da campanha a deputado estadual de Paulo Batista, o herói do raio privatizador, convocaram via Facebook o primeiro ato pró-impeachment da então presidente na Avenida Paulista.
Organizações e movimentos políticos preexistentes passaram a coordenar os próximos atos e, quatro meses depois, milhares de pessoas se reuniriam na mesma avenida trajando verde e amarelo para demandar a renúncia de Dilma.
A massa revoltada, porém, não dirigia sua ira apenas contra o partido da estrela, mas também rejeitava políticos de outras agremiações. Seriam todos farinha do mesmo sistema corrupto.
Uma rara exceção nesse sentido parecia ser Jair Bolsonaro.
Tendo escapado ileso a uma operação que desvendou esquemas de corrupção bilionários envolvendo boa parte do establishment político e econômico brasileiro, foi Jair Bolsonaro quem utilizou desse mesmo antagonismo como o núcleo de sua retórica.
Foi ele o protagonista do quarto e grande episódio da rebelião que teve início em 2013.
Antes de ser antipetista, o bolsonarismo é anti-elites. A sua missão, muito maior do que desbancar um partido, sua retórica revela, é dar prosseguimento ao ímpeto lava-jatista: fazer valer, acima de tudo, os "anseios do povo".
Na feliz expressão da jornalista e escritora Eliane Brum, a eleição do capitão reformado representou metaforicamente a subida do "homem mediano" ao Planalto.
Nos lembra Eliane: a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 representou a escolha por um líder de destaque. Estava ali, o cidadão comum entendia, o "melhor dos nossos", um representante na acepção da palavra.
Menos de duas décadas depois, a eleição de Jair Bolsonaro simboliza a desconfiança com a própria ideia de representação. O desejo, ambicioso, mas também desiludido, é o de ver a si mesmo no poder.
Quando confessa, honestamente, o seu desconhecimento em matéria de economia e recorre ao "posto Ipiranga" Paulo Guedes, Jair concede ao eleitor uma mensagem franca: confie em mim, pois sou como você, nem melhor e nem pior.
Novamente, quando diz: "O poder popular não precisa mais de intermediação", captura um anseio difundido pelas relações em rede, o de construir um ambiente horizontal entre o poder político e o indivíduo.
Não à toa o apego de Jair ao Twitter como ferramenta de comunicação. O cidadão comum não pensa a democracia, ele sente.
Pois bem, em pouco tempo, por caminhos e descaminhos, a história prosseguiu, resistindo a qualquer decreto de encerramento.
Se há 30 anos a democracia liberal parecia tendência inconteste e para sempre desejada, as vivências contemporâneas nos deixam claro que, num mundo em que resta como única certeza a mudança constante, o anúncio do fim será sempre uma tentação ingênua e desavisada.
*Rafael Burgos é jornalista, autor do TCC "Donald Trump: a redenção pelo regresso".
*Camila Rocha é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
* * *
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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