Decreto de Bolsonaro atinge a diversidade da representação popular
*Ana Claudia Teixeira, Luciana Tatagiba e Wagner Romão
Sob a inspiração do que vinha ocorrendo na área da saúde, os congressistas estabeleceram que a sociedade civil deveria exercer controle social sobre as ações do Estado e, mais que isso, deveria atuar na própria formulação e fiscalização das políticas públicas, no âmbito municipal, estadual e federal. Foi dessa compreensão que surgiram os conselhos de políticas públicas, e inúmeras outras inovações institucionais participativas como as conferências, audiências públicas, planos diretores e ouvidorias, em diferentes setores de políticas públicas, já ao longo dos anos de 1990.
Há intensa produção acadêmica no Brasil e no exterior que conta essa história da democracia "from below", ou, nos termos consagrados por Boaventura de Souza, das experiências que "democratizam a democracia", e seus impactos sobre a desigualdade, como por exemplo o estudo de Adrian Gurza Lavalle e Leonardo Barone sobre a correlação positiva nos municípios entre a existência de conselhos e melhores índices de desenvolvimento humano.
Os conselhos de políticas públicas foram os espaços que mais se institucionalizaram, por força de lei, e estão hoje espalhados em todos os municípios brasileiros, e em diferentes setores de políticas públicas. A ideia basilar que fundamenta os conselhos é que o Estado não sabe tudo e que, em sociedades complexas como a nossa, a elaboração da política pública deve incorporar diferentes pontos de vista. Os conselhos de políticas públicas não são espaços do Estado e nem dos movimentos sociais. São arenas institucionais voltadas à participação dos cidadãos organizados na construção da coisa pública, ao lado do Estado.
Eles são estruturas permanentes compostas em parte por membros do governo indicados por seus superiores e por especialistas e representantes de entidades da sociedade civil e do mercado, atuando de forma não remunerada. São, portanto, espaços de oxigenação da máquina pública, em que se exercita a crítica e o contraditório, elementos fundamentais para a boa condução das políticas públicas – que necessariamente devem ser alvo de monitoramento e avaliação externas. Constituem-se em peças-chave de sistemas de políticas como os Sistemas Únicos de Saúde e de Assistência Social e as estruturas de ministérios como o Ministério da Educação e o Ministério do Meio Ambiente. Vertebram, monitoram e aconselham as autoridades para a melhor execução de suas funções constitucionais.
É exatamente esta forma de controle social, construída por gerações de gestores públicos, ativistas da sociedade civil, acadêmicos, políticos e técnicos governamentais que está sob ataque do governo Bolsonaro.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já haviam expressado preocupação com a inatividade dos conselhos nestes primeiros dois meses de governo, assim como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Além disso, foi revelador o veto de Bolsonaro à especialista Ilona Szabó, convidada pelo ministro Sergio Moro para ocupar uma suplência no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
No final de março, o Blog Ambiência, da Folha, publicou que estava em curso uma ação articulada pela Casa Civil de consulta a 19 ministérios sobre os colegiados neles existentes, visando sua "extinção, adequação ou fusão".
Com a publicação, ocorrida na última quinta-feira, do Decreto 9.759/2019, as intenções do governo ficaram mais claras. Bolsonaro ameaça extinguir os órgãos colegiados (conselhos, comitês, comissões, equipes etc.) que tenham sido instituídos por decreto e atos normativos inferiores a decreto (portarias, resoluções…). Trata-se de um pleonasmo, pois decretos são normas legais fracas que não podem regular mais do que a si próprios, ou seja, sobre leis ordinárias, complementares e normas constitucionais.
O Decreto 9.759 coloca em risco conselhos importantes como o Conselho Nacional das Cidades, dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT, dos Direitos do Idoso, de Transparência Pública e Combate à Corrupção, de Políticas sobre Drogas, de Segurança Pública, de Erradicação do Trabalho Infantil e do Trabalho Escravo, de Política Indigenista e do Comitê Gestor da Internet no Brasil, entre dezenas de outros órgãos colegiados.
Aqui se aplica muito bem a máxima de Onyx Lorenzoni, quando nos primeiros dias de governo exonerou 293 cargos de confiança e colocou em paralisia a Casa Civil. A regra é extinguir primeiro e, eventualmente, recriar depois. O Artigo 7 do Decreto determina que as propostas de recriação dos colegiados extintos devem ser enviadas até o dia 28 de maio de 2019 à Casa Civil.
Fica bastante claro que não se trata em absoluto de uma medida para diminuir custos ou burocracias. O ataque é ao princípio constitucional da participação social. Não se pode numa canetada jogar fora uma construção institucional de décadas que tem assegurado a ampliação de uma agenda de direitos, construída em estreita sintonia com o público alvo das políticas. É evidente que a participação cidadã tem incomodado os interesses políticos e econômicos dos atuais grupos no poder. A questão que ainda precisamos responder é por quê.
As declarações de Lorenzoni não deixam dúvidas. "Os mais de 700 conselhos na administração direta e indireta, que vinham de uma visão completamente distorcida do que é representação e participação da população, tinham como gênese a visão ideológica dos governos que nos antecederam, de fragilizar a representação da própria sociedade".
Esse discurso é o retrato da desinformação.
Primeiro, os conselhos de efetiva representação da sociedade civil, alguns dos quais apresentamos acima, são minoria dentre os alegados "mais de 700 conselhos na administração direta e indireta". O que se pretende excluir com o decreto, em sua maioria, são comitês interministeriais e comissões com participação restrita de funcionários do próprio governo.
Segundo, não é verdade que os conselhos – com representação da sociedade civil – fragilizavam a "representação da própria sociedade". Pelo contrário, eles ampliam as possibilidades da representação. Quem pode imaginar de boa fé que votando de quatro em quatro anos os portadores de deficiência, por exemplo, serão capazes de fazer seus interesses ouvidos? Como vemos acontecer em outros países ao redor do mundo, o que faz a democracia avançar não é o monopólio da representação, pelo contrário, é a diversidade dessa representação. E a participação nos conselhos permite exatamente isso.
Espaços como os conselhos impõem a convivência e o respeito ao contraditório, habilidade que o governo Bolsonaro não tem, nem demonstra disposição de aprender. Exigem pensar as políticas públicas para além dos próprios governos, independentemente dos seus partidos, com planejamento de longo prazo e em busca da garantia dos direitos. Exigem pensar a democracia como um processo que agrega a sabedoria acumulada de agentes do Estado e da sociedade civil, algo muito distante do imediatismo que tem orientado esses primeiros meses de governo.
*Ana Claudia Teixeira, Luciana Tatagiba e Wagner Romão são coordenadores do Nepac – Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva, da Unicamp.
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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