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Entendendo Bolsonaro

Jair Bolsonaro: a eleição para além da facada

Entendendo Bolsonaro

16/06/2019 01h19

(Crédito: Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo)

*Deysi Cioccari

Muitos afirmam "Bolsonaro foi eleito após o atentado", "Bolsonaro se elegeu porque o PT não soube se posicionar". Um olhar desatento poderia concordar com essas afirmativas, mas se olharmos um pouco para trás – e, quando digo pouco, são quatro anos – podemos entender melhor a eleição de um presidente que quebrou a hegemonia PT x PSDB no país.

Costumo dizer que o Congresso Nacional é a sala de casa da política brasileira. É um resumo do que somos. Foram eleitos, para o Congresso atual, deputados de 30 partidos e senadores de 21, o que retrata o parlamento mais fragmentado da história do país.

Mas ao voltarmos nossos olhos para 2014, quando tínhamos o Congresso mais conservador desde 1964, o que se viu foi um aumento no número de militares, religiosos, ruralistas e outros segmentos mais identificados com o conservadorismo. De lá para cá, a imagem de Jair Bolsonaro foi construída objetivando as eleições de 2018.

Em 2014, Bolsonaro protagonizou um episódio marcante na política brasileira quando afirmou, usando seu espaço na Tribuna da Câmara dos Deputados, que (recuperando discussão de novembro de 2003) não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela "não merecia".

A partir de então, o que se viu foi uma construção de posicionamentos claramente deliberados à extrema direita, como, por exemplo, quando ele afirma, em debate na TV Câmara, que "o filho começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele", valendo-se de sua influência como parlamentar.

O que ele diz reverbera e pode soar como positivo aos seus seguidores. Com 12.739 retweets, o post em que Bolsonaro critica abertamente o que ele chama de "homossexualismo" foi o terceiro mais replicado e mais favoritado. Isso mostra o poder de reverberação do discurso do parlamentar. No entanto, não podemos ver Bolsonaro como um fenômeno construído tão somente pela mídia que repercute todas suas falas.

Ele é representante de uma parcela de 57% da população que ainda apoia a pena de morte num país em que a pena não existe desde 1855. E, também, de uma grande parte da população que elegeu militares, ruralistas e evangélicos como a grande maioria do Congresso em 2014 e em 2018.

O poder de governar sempre foi mostrado imageticamente de maneira espetacular com profusão de símbolos, sons e performances. A questão é que hoje esses poderes são amplificados pelo poder das tecnologias. A mídia, as redes sociais e o advento incessante de novas tecnologias potencializam e amplificam o que antes era mostrado apenas com outros aparatos.

Esses aparatos também permitem que a participação no processo seja mais abrangente e o espetáculo chegue onde não chegaria em outras épocas. Uma consequência é a possibilidade de um outro se manifestar, e muitas vezes vociferar, protegido por uma tela de computador, oferecendo uma impessoalidade ao discurso que certamente não ocorreria numa manifestação frente a frente.

A política de 2018 acionou  paixões numa batalha de narrativas em que inexistia o confronto de ideias. E, para que exista o espetáculo, é fundamental que haja interesse das partes envolvidas: mídia (palco e muitas vezes protagonista), personagem político e plateia.

Numa pesquisa recente para a Faculdade Cásper Líbero, a crítica de Fotografia Simonetta Persichetti e eu analisamos como os veículos de imprensa abordaram Bolsonaro em 2018. Como resultado, concluímos que a mídia nunca deixou de falar de Bolsonaro. Até mesmo o seu silêncio era repercutido, no que, então, o deputado fornecia uma tréplica.

Mas é correto afirmar que o turning point da sua candidatura foi o episódio da facada?

Uma terceira via estava surgindo na política brasileira desde 2010. O breve destaque nas campanhas de Marina Silva indicava o fim de uma polarização PT x PSDB. Com o Congresso eleito em 2014 como o mais conservador pós-64 a história brasileira dava claros sinais de procurar um representante mais alinhado à direita.

Nesse contexto, as manifestações anteriores de Junho de 2013 somadas ao posterior impeachment de uma presidente mulher eleita democraticamente e à exposição massiva da corrupção pela Operação Lava Jato, deixando no eleitor brasileiro um sentimento de aversão "a tudo que está aí", abriram espaço para que alguém ocupasse uma cadeira vazia no conservadorismo brasileiro.

Essa cadeira foi ocupada por Jair Bolsonaro, que, com seu discurso, entendeu que uma grande parcela da população buscava um líder político com valores voltados ao passado: pátria, família e Deus.

A sua ascensão como candidato pode ser explicada pelo fato de que, quando clama para si valores do passado, ele oferece uma segurança. O passado nós conhecemos. Do futuro não sabemos o que virá. Discutir pautas progressistas como aborto, casamento homoafetivo, transexualidade são assuntos de um futuro que não conhecemos e, portanto, nos trazem insegurança. É mais fácil lidar com o passado, exatamente por ser algo conhecido de nós.

Depois do atentado em 6 de setembro, o então candidato não pôde ir a debates, mas foi poupado por seus adversários. Sua imagem, que sempre esteve presente nos jornais, ficou mais espetacularizada ainda. A história de Bolsonaro criou uma narrativa digna de novela: o protagonista sofre um atentado, fica entre a vida e a morte, gerando expectativa nos eleitores (espectadores), e então sobrevive, mas frágil. E ainda lida com os sonhos (da presidência) e medos de quem sofreu. Tudo aos olhos atentos do público.

Encerrados os primeiros debates após o atentado, Bolsonaro concede entrevista de 40 minutos ao programa "Brasil Urgente" e, no dia seguinte, tem dez minutos no Jornal Nacional. Nem o horário eleitoral gratuito poderia ter feito tanto por ele. Na semana seguinte, os evangélicos declaram seu apoio ao candidato, o "poder do profeta" indica seu preferido.

Weber nos explicaria esse apoio afirmando que a obediência vem do medo e da esperança. O medo, de acordo com ele, pode vir da vingança dos detentores do poder. Vota-se então em quem o pastor indica. A facada por si só não foi o motivo de sua eleição. Foram os eventos sucessivos a ela. Uma narrativa espetacular. O espetáculo por si só. Quando a narrativa começa a ser saturada, os índices de intenção de voto ficam estagnados. Mais 15 dias de campanha e o "herói" que sobreviveu à morte não teria sobrevivido ao debate político. O "mito" espetacular criado sob um eleitorado conservador teria se desmanchado tão brevemente quanto surgiu.

*Deysi Cioccari é doutora em Ciência Política pela PUC-SP e pós-doutoranda em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.

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