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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro: um primeiro semestre de teste aos limites institucionais

Entendendo Bolsonaro

01/07/2019 02h38

(Crédito: Marcos Corrêa/PR)

*Murilo Cleto

No último domingo (30), com direito a diversos atos pró-Lava Jato, o governo Bolsonaro chegou ao fim do seu primeiro semestre com uma série de derrotas importantes no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, num misto de lambanças e extrapolações legislativas.

É possível que a pergunta de um milhão de dólares que norteou toda a transição de poder no ano passado ("As instituições brasileiras serão capazes de conter Bolsonaro?") esteja, ao menos momentânea e parcialmente, respondida. Pelo menos até aqui, e pelas mais diversas razões, sim.

Já em março, a Câmara surpreendeu o Planalto com a aprovação do texto-base de uma proposta de emenda constitucional que obriga o governo a executar todos os investimentos previstos no orçamento. A chamada "PEC do orçamento impositivo" realiza justamente o oposto do que Bolsonaro e Paulo Guedes defendiam com a "PEC do pacto federativo". Para tentar disfarçar a derrota, o PSL mudou de posição no meio do caminho e celebrou o resultado.

A medida provisória 870/2019, que promovia uma significativa reforma administrativa, também sofreu resistência no Congresso. Mesmo depois de pedir pessoalmente o apoio de parlamentares, Moro perdeu o tão desejado Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) e ganhou, a contragosto, a Fundação Nacional do Índio (Funai). O ministro da Justiça também teve que amargar chamadas públicas de atenção do presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia, que não gostou nada da pressa para a aprovação do chamado "pacote anticrime" e chegou a dizer que o texto era uma cópia do projeto apresentado pelo ex-ministro da Justiça, hoje no STF, Alexandre de Moraes.

Outra MP derrubada, dessa vez no Supremo, foi a 886/2019, que transferia a demarcação de terras da Funai para o Ministério da Agricultura. O STF também barrou, por unanimidade, o decreto que extinguia os conselhos, fóruns e demais colegiados da administração pública federal. A despeito dos governistas, que protestaram fortemente contra a medida, o Supremo recentemente também criminalizou a homofobia. Havia uma expectativa muito grande quanto à atuação do órgão, principalmente depois que o presidente Dias Toffoli firmou um pacto entre os poderes da República.

A reforma da Previdência, que foi aprovada com dificuldades na Comissão de Constituição e Justiça, em tese a etapa mais simples da tramitação, teve o regime de capitalização, caro ao ministro da economia Paulo Guedes, eliminado do texto final apresentado pelo relator do projeto na Câmara. Não foram poucas as vezes em que Guedes ameaçou sair do governo caso sua proposta não fosse integralmente ratificada pelo Congresso.

Poucas derrotas foram tão sentidas, no entanto, quanto o parecer que, no Senado, pedia a suspensão de decretos presidenciais que flexibilizavam a posse e o porte de armas. Desde janeiro, o presidente Bolsonaro editou nada menos que sete decretos sobre o tema. Diante dos revezes, o governo finalmente enviou um projeto de lei que altera o Estatuto do Desarmamento para o Congresso Nacional. O que era o caminho mais óbvio, afinal todo mundo sabe que mudanças da magnitude que os bolsonaristas esperam nesse sentido precisam de amparo legislativo, foi a última das medidas. Há muitos motivos para acreditar que seja de propósito.

Bolsonaro já demonstrou que não tem grandes problemas em recuar. Mesmo quando sabe que extrapola atribuições, age por meio de decreto ou medida provisória esperando pela reação. Se passar, bom para o governo. Se não, ele corre para protestar no Twitter contra o sistema. E aí é bom para o governo também.

Sobre a decisão do Senado, Bolsonaro colocou em dúvida a legitimidade da votação e disse que para ele ninguém manda recado. "Votaram contra o decreto ou contra o presidente?", perguntou em tom retórico.

Mesmo que o Planalto siga negando, os atos pró-governo – primeiro o de 26 de maio e, depois, o de ontem – têm como objetivo reforçar o descrédito das instituições para que Bolsonaro, em condição de superioridade, continue empurrando-as para o corner.

É sintomático, aliás, que Moro, ainda sonhando com uma vaga no Supremo, esteja apoiando manifestações que, dentre outras coisas, pedem para que a Corte seja fechada pelo governo.

Porque o governo Bolsonaro não existe senão em função dessa tensão. É só assim que ele se justifica. E porque depois dos vazamentos do 'The Intercept' é Moro quem tem precisado cada vez mais dos bolsonaristas – e não o contrário – para sobreviver politicamente.

Ao confundir o presidencialismo de coalizão com a corrupção e incentivar os ataques ao Supremo, Bolsonaro faz de muitas dessas derrotas um trunfo. É o modo que encontrou para, mesmo no governo, continuar bancando a retórica antiestablishment da ala mobilizadora – como o filósofo Marcos Nobre definiu o núcleo olavista de dentro e fora do Planalto – e apostar na estruturação de uma base insolúvel de apoio que hoje ronda os 30%, pequena demais para obter maioria, mas grande o suficiente para permanecer no poder e até galgar reeleição. Reeleição esta que Bolsonaro diz topar se não houver uma boa reforma política – ainda que o governo nunca tenha proposta uma, nem durante a campanha.

Seis meses depois do início do mandato que interrompeu um grande ciclo eleitoralmente hegemonizado por centro-direita e centro-esquerda no país, a boa notícia é que, nem que seja por uma questão de sobrevivência, as instituições estão contendo Bolsonaro. Por tudo o que já disse e inclusive prometeu o atual presidente, poderia ser bem pior. A má é que, para ímpetos autoritários corroerem as democracias hoje, um semestre raramente é o suficiente – como demonstram muitas das experiências, inclusive a venezuelana.

Por isso os testes de Bolsonaro às instituições precisam ser lidos como tais. Como testes. E por isso toda atenção nunca é demais.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Cultura e Sociedade: Diálogos Interdisciplinares, e atualmente aluno especial do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professor de História e Sociologia nos ensinos básico e superior, também atua como palestrante e assessor pedagógico.

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