Ao distorcer dados, Bolsonaro atende a clamor 'anti-especialistas'
*Igor Tadeu Camilo Rocha
Está longe de ser novidade o fato de o presidente Jair Bolsonaro dar declarações que geram indignação. A retórica baseada em "fatos alternativos" e em polêmicas preconceituosas diversas tornou-se rotina, à moda de Trump, em sua campanha e mandato, como bem analisou Bernardo Mello Franco, em O Globo. Porém, o dia 20 de julho de 2019, quando seu governo completou 200 dias, ficou especialmente marcado por esse tema.
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A primeira declaração do dia 20 foi afirmar que "falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira", pois, segundo ele, no Brasil "você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo". A fala foi feita em coletiva de imprensa, sendo amplamente noticiada e criticada por contrariar em absoluto o que todos os dados sobre o assunto dizem, mesmo nas estatísticas mais conservadoras.
Também repercutiu sua reafirmação do suposto envolvimento da jornalista Miriam Leitão com a Guerrilha do Araguaia, associando isso a ela ter sido militante do PCB, além de tê-la acusado de mentir sobre ter sido torturada. Tal declaração foi objeto de uma veemente nota de repúdio da Rede Globo, lida no Jornal Nacional, na edição do mesmo dia.
Repercutiu ainda ter se referido aos governadores nordestinos como "governador de paraíba", afirmando ainda que "o pior é o do Maranhão" ( Flávio Dino – PC do B). Falou a respeito de fechar a Ancine caso não fosse possível aplicar a ela um filtro do conteúdo. Ainda desqualificou os dados do Inpe sobre recordes de desmatamento na Amazônia, acusando o diretor do instituto de divulgar dados falsos que prejudicam o nome do Brasil. Foi respondido pelo seu diretor, que caracterizou sua fala de "pusilânime e covarde".
Houve uma afirmação preconceituosa, outras duas mostrando uma desconexão enorme com a realidade – numa dela houve reação hostil aos jornalistas ao ser questionado – e outra que mostra desconhecimento da função de um órgão federal. Por fim, a repetição de uma falsa notícia, essencialmente difamatória.
A pergunta que deve ser feita aqui é: politicamente, o que Jair Bolsonaro ganha com declarações como essas, que exaltam a ignorância, não hesitam em difamar críticos e nem em exibir preconceitos? Arrisco uma resposta: ela abala (e se vale de abalos anteriores e mais profundos socialmente) a confiança geral em pilares essenciais da democracia e, com isso, fideliza ainda mais seus apoiadores radicais e traz de volta alguns que desertaram.
De fato, o histórico do presidente mostra que essas falas não são meras "declarações infelizes" esporádicas: são regra. Considero, contudo, um equívoco vê-las como meras "cortinas de fumaça" que tiram atenção da opinião pública dos "assuntos importantes". Se tais falas tiram esse foco dos cidadãos, são sintomáticas de um estado profundo de degradação da democracia liberal no Brasil. Elas sintetizam recusas a valores democráticos importantes , e a adesão de milhões a essas recusas é uma anomia social, da qual Bolsonaro converte-se no sintoma mais visível – algo percebido por alguns seguidores mais moderados, que mostram alguma tendência a se afastar.
Para explicar isso, recorro a um artigo publicado recentemente, pensando na situação dos Estados Unidos (não nos esqueçamos da afinidade política de Bolsonaro e Trump) e fenômenos sociais e políticos de lá, mas que podem ser vistos aqui.
Em 2017, Tom Nichols, professor de Assuntos de Segurança Nacional da U.S. Naval War College (Rhode Island, EUA), publicou interessante artigo na renomada revista Foreign Affairs. No texto, tentou esboçar a resposta a uma pergunta tão complexa quanto inquietante: como a América perdeu a confiança na expertise (ou especialização) e por que isso é um enorme problema para a democracia?
Segundo ele, nas sociedades contemporâneas, nas quais as democracias liberais se inserem, há uma divisão social do trabalho muito clara devido à complexidade da forma como elas próprias se organizam. Para fazer desde as coisas simples (como uma tarefa doméstica) até às mais complexas (como ser curado de uma doença grave), os indivíduos devem recorrer a instrumentos, recursos e procedimentos que envolvem (direta e/ou indiretamente) uma gama incontável de pessoas especializadas. Diante disso, na democracia, a cidadania se constrói sob premissa de que nenhum cidadão poderá ser autossuficiente. Assim, é necessária uma mínima confiabilidade nas competências dos demais e suas diversas experiências e formações.
No limite, o cliente último de qualquer produto ou serviço é toda a sociedade (democraticamente organizada). Assim se forma um cidadão funcional à democracia. Ele é educado e se informa de maneira a ter uma relativa autonomia quanto a suas ações. Porém, junto a isso, desenvolve laços de confiança com outros cidadãos, de maneira que poderia lhes confiar assuntos e decisões tocantes a sua própria vida, sem deixar de acompanhar tais processos de decisão de maneira ativa e crítica.
Por óbvio, o cidadão não conhece todos os assuntos de interesse geral, pois seria humanamente impossível. Por isso, pelo uso da razão, ele escolhe representantes que o façam. Ciente de sua limitação de conhecimentos e sem todas as especializações, ele se informará através de uma classe de especialistas (intelectuais, imprensa, entre outros) de maneira a não se manter distante da vida política.
O mesmo será feito pelos mesmos representantes escolhidos. Eles também não têm a capacidade de dominar todas as especialidades em todos os assuntos de interesse do Estado (economia, relações exteriores, meio-ambiente, educação, etc.). Diante disso, irão recorrer a um corpo de especialistas que os darão o respaldo necessário às tomadas de decisão. E esse respaldo está, naturalmente, sujeito a erros. Por isso, o método crítico de produção de conhecimento (análise crítica, avaliação por pares, pesquisa, entre outros) é imprescindível, pois estabelece o conhecimento e a razão como parâmetros.
Contudo, para Nichols, podemos estar no meio de uma fratura desse contrato social na medida em que vemos a falência da figura do especialista como esse mediador na democracia. Por algum motivo, vivemos num período em que predomina uma recusa a esse tipo de diálogo. Recusar uma análise ou opinião especializada se tornou até motivo de orgulho. Paixões e emoções tornaram-se mais incisivos que dados e argumentos em discussões de diversos assuntos. E isso é muito ruim para uma democracia.
Para ele, essa recusa geral é produto de uma avassaladora complexificação das relações sociais, na qual se observa, nas democracias modernas, um distanciamento cada vez maior entre o especialista e o cidadão comum. Ocorre aí uma dupla reação diante dessa fissura social, tocante a esses dois tipos de agente no espaço público. Também há um processo que ocorre no próprio espaço formado por essa própria fissura.
Entre os cidadãos comuns, floresce uma crescente sensação de desamparo, que se converte em ressentimento e rejeição ao corpo de especialistas. Eles são identificados com uma elite, distante de sua realidade e alheia a seus problemas.
Nessa classe de especialistas, para Nichols, há outra reação. Uma parte desse grupo forma uma burocracia fechada e rígida, quase impermeável que, efetivamente, se isola e conduz assuntos de interesse público de maneira alheia aos cidadãos comuns. Outra parte, fora dessa burocracia, isola-se em diálogos internos, fechados em círculos específicos, de maneira também a isolar-se socialmente. Um exemplo disso é a vulnerabilidade da universidade pública quanto a constantes distorções e difamações por uma ampla rede de apoiadores do bolsonarismo e do próprio presidente, em grande parte devido a esse distanciamento.
E o que acontece nessa imensa zona cinzenta entre uma classe de especialistas e os demais cidadãos comuns? Por um lado, o conhecimento estabelecido, como o de médicos, advogados, engenheiros e outros, permanece útil, embora reduzido a "saber técnico". Dito de outra maneira, as pessoas continuam procurando médicos para tratarem uma perna quebrada, mas só vão lhe dar ouvidos sobre uma questão mais profunda de saúde pública quando (ou se) isso for conveniente a interesses imediatos.
O mesmo vale para políticas públicas. "Quero problemas resolvidos, mas não me envolva na discussão sobre eles" torna-se a postura padrão desse novo cidadão comum. A propensão moderna para se aceitar soluções simplistas para questões complexas ou teorias de conspiração tem essa raiz psicossocial. Por outro lado, o especialista, no olhar do cidadão comum, ganha outro aspecto funcional: o viés de confirmação para aquilo que já se pensa previamente.
É uma postura bem parecida com a que disse Luiz Marques, em artigo na Folha de S. Paulo, sobre os negacionismos científicos: há um estado de mal-estar civilizacional, no qual negar os alertas de futuro catastrófico feitos por uma ciência, que já não mostra mais a "terra prometida" de um progresso contínuo, converte-se na postura mais confortável. E há, sim, especialistas que servem ao reforço de negacionismos diversos – negacionismos históricos, negacionismo climático, negação do risco dos agrotóxicos, entre outros.
E o risco maior à democracia é que esse processo cria fissuras enormes em todo o tecido social, quebrando necessárias redes de confiança entre cidadãos. Isso porque as verdades racionalmente formadas no debate dão lugar a narrativas fragmentadas e individualistas, muitas vezes organizadas em comunidades unidas pelo fundamentalismo e teorias conspiratórias. Valoriza-se demasiado a forma como algo é afirmado, sua eloquência, além da funcionalidade do que se afirmar enquanto viés de confirmação, em detrimento do seu conteúdo.
Assim, cria-se um cidadão disfuncional à democracia. Sua atuação política se baseia em "ganhar no grito" um debate, e o uso da razão como modo de buscar a verdade acaba perdendo validade, sendo instrumentalizada, de modo que confirme interesses e crenças.
Esse tipo de atitude assume um aspecto de anomia social, podendo se converter em processos que servem à reafirmação de preconceitos, de ideologias não democráticas e de soluções simplistas a problemas complexos. Cria-se formas de sociabilidade e de se ver o mundo baseadas em pseudoverdades, que são argumentos falsos ou de sustentação fragilíssima cobertos por um invólucro de pensamento crítico. É isso, em grande parte, que Rafael Soares de Oliveira observou, em artigo recente, sobre a construção social do bolsonarismo.
Diante das reflexões trazidas por Nichols – repito, sobre os Estados Unidos, embora o autor afirme que seus apontamentos valeriam para grande parte das sociedades ocidentais – caberia a pergunta se o bolsonarismo ou o próprio Bolsonaro não seriam o triunfo político desse arquétipo do cidadão disfuncional a uma democracia moderna.
O dia 20 de julho de 2019 deu argumentos para se dizer: sim. A notícia falsa sobre a jornalista, as negações aos dados de especialistas sobre a Amazônia, o raciocínio em cima da Ancine baseado num falso problema e a negação da fome no Brasil – seguida de gritos contra quem retruca a falsa afirmação – não deixam dúvidas quanto a isso.
Se as mediações com o conhecimento e a própria verdade – bem como os procedimentos estabelecidos para alcançá-la – são postas em xeque, os instrumentos de exercício da cidadania numa democracia liberal em estado pleno de sanidade também são desconstruídos, pois no plano ideal esses instrumentos baseiam-se no uso público da racionalidade. Esta última dá lugar ao carisma, na definição dele que remete a figuras populistas e/ou autoritárias de todos os espectros políticos ao longo da história do século XX até hoje.
Enfrentar este problema representa o grande desafio das democracias atualmente. Nichols propõe uma revisão e autocrítica da própria classe de intelectuais e especialistas diversos, e também das organizações sociais feitas por cidadãos de sua atuação na democracia. Pode ser um caminho. Mas, para traçá-lo, antes, é necessário tomar consciência do grau de alerta a que chegamos.
*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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