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Entendendo Bolsonaro

Governo Bolsonaro: ala "técnica" é, também, ideológica

Entendendo Bolsonaro

03/09/2019 23h09

(Crédito: Adriano Machado/Reuters)

*Igor Tadeu Camilo Rocha 

"Ala ideológica do governo Bolsonaro". Como se sabe, o termo comumente se refere ao grupo de pessoas, ligadas ao governo ou dos bastidores dele, sob tutela intelectual do ex-astrólogo, escritor e influencer Olavo de Carvalho – Vélez Rodríguez, Carlos Bolsonaro, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo, por exemplo –, além daqueles ligados ao fundamentalismo neopentecostal – como maior exemplo, a ministra Damares Alves.

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O que caracteriza essa ala dita ideológica de maneira central é a, muitas vezes, quixotesca e, outras vezes, de consequências graves, ação dos seus integrantes dentro de uma "guerra cultural" na esfera pública. Tratam-se de figuras que tomam a frente de pautas como os ataques à ciência e às universidades, ou do negacionismo dos crimes da ditadura. Essas pautas se integram a outras, como as sintetizadas pelo bordão da "defesa da família", que abarcam discursos baseados em teses conspiratórias, como a do marxismo cultural ou da suposta ideologia de gênero.

Segundo consta a narrativa, em contraponto a essa ala ideológica, existiriam, pelo menos, outras duas alas. Uma formada por militares e outra mais "técnica", cujo exemplo mais emblemático seria o ministro da Economia Paulo Guedes.

Mas essa distinção é um tanto nociva. A construção feita ao caracterizar uma ala do governo por "ideológica", por ser calcada nas pautas negacionistas, anti-científicas, conspiratórias e regressivas a direitos humanos, também acaba por acentuar um suposto caráter "não-ideológico" nos demais membros da base do governo. O efeito grave disso é despolitizar aspectos centrais do governo bolsonarista e, assim, empobrecer bastante o debate crítico a seu respeito.

É necessário ter em mente que todas as "alas" da base deste e de outros governos é ideológica e isso, em si, não é um problema. Afirmar o contrário apenas indica que alguns comportamentos ideológicos de muitos agentes do governo Bolsonaro se tornaram senso comum, sendo naturalizados a ponto de, mesmo ideológicos, não serem percebidos dessa maneira. Isso remete ao problema da pós-política, um tipo importante de despolitização, estudado por vários autores.

A despolitização como conceito político remete às obras de dois filósofos: o francês Jacques Rancière e o esloveno (e também psicanalista) Slavoj Žižek. Grosso modo, a despolitização define um conjunto de manifestações políticas da contemporaneidade que, paradoxalmente, se caracterizam por evitar a política e os conflitos e embates inerentes a ela.

Um dos tipos de despolitização é a pós-política. Esse termo remete à ideia, muitas vezes associada ao cientista político estadunidense Francis Fukuyama, de que ideologias já teriam sido superadas com o fim da Guerra Fria e o triunfo final (o "Fim da História", título de seu livro mais famoso) das democracias liberais. Assim, ideologias seriam anacrônicas e ultrapassadas, não cabendo mais disputas entre pontos cruciais da vida em comum, como economia, relações exteriores, vida em sociedade, formas de organização, políticas públicas, entre outros.

No lugar das disputas políticas, entraria a "gestão". Esta não ficaria a cargo de políticos, mas de tecnocratas capacitados e inteligentes que poderiam gerir os assuntos fundamentais a todos, sem qualquer viés ideológico. É errôneo pensar nesse fenômeno como inerente apenas à direita política. Um exemplo disso são críticas que os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e, sobretudo, Tabata Amaral (PDT-SP), filiados a partidos de centro-esquerda, têm recebido ao longo dos últimos meses.

Mas o foco aqui é pensar como essa pós-política também é aspecto importante para se problematizar a base "técnica" e "pragmática" do governo. O objetivo, aqui, é entender que ela é, também, apesar de se mostrar diferente, "ideológica".

Ideologia, grosso modo, define sistemas de ideias sustentadas por grupos sociais. Elas organizam formas de ver o mundo, que refletem e racionalizam os interesses coletivos de grupos humanos organizados em sociedade, em diversos âmbitos, sobretudo relacionados a alguma forma de exercício de poder e disputas de interesses. É um conceito extremamente polissêmico e complexo, e recomendo um vídeo bem didático do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA sobre ele.

Aqui, tomando a definição esboçada acima, que cabe inclusive numa interpretação depreciativa de ideologia – como um sistema de ideias fechado com o qual se distorcem dados da realidade, rejeitando contrapontos, de maneira a mascarar contradições, interesses e erros – podemos observar a ideologia contida no grupo que não é identificado por ideológico da cúpula governista.

Um exemplo claro disso é Paulo Guedes. Ele parece, a cada ato, exemplificar aquilo que Fabrício Luiz Fernandes Marcos demonstrou em sua interessante dissertação, publicada em 2018, intitulada Antipolítica e Democracia no Pós-2008: Um Estudo sobre os Mecanismos de Despolitização da Esfera Pública no Brasil Atual.

Para o autor, há em curso um processo no qual a racionalidade neoliberal substitui, no debate público, a política e aquilo que lhe é inerente: espaços de disputas de projetos distintos e confrontos de visões de mundo, de narrativas, de interesses e de grupos diversos se esvaziam em meio à reafirmação da necessidade de aplicação de políticas de austeridade. É no que consiste o discurso de Guedes, que reafirma uma hegemonia ideológica que se constrói no Brasil desde, pelo menos, o governo Fernando Collor de Melo.

Isso se torna evidente nas declarações do agora ministro da Economia desde logo após o resultado das eleições, quando afirmou categoricamente que iria enterrar o modelo econômico social-democrata. A receita para tanto repete pontos centrais da cartilha neoliberal sintetizada no Consenso de Washington, como a diminuição de gastos públicos – o que necessariamente implica cortes substanciais nos serviços e funcionalismo públicos – além de privatizações e uma ainda maior abertura econômica ao capital externo.

Noutra dissertação, em economia, publicada em 2016, Helena Marroig Barreto analisa que essa hegemonização neoliberal na América Latina implicou um novo ciclo extrativista. Este ciclo, atualmente, existe associado à acumulação neoliberal e à crescente financeirização dos mercados, o que impõe riscos ainda maiores para esta opção de desenvolvimento.

Tal risco inerente a este modelo econômico, baseado em commodities, está no fato de as oscilações de seus preços acontecerem de acordo com uma lógica especulativa, dependente do mercado externo, a partir da qual a região passa a exercer pouca influência sobre as decisões. É aí que figuras como Ricardo Salles, ministro do Meio-Ambiente, e Marcos Pontes, da pasta de Ciência e Tecnologia, se enquadram ideologicamente ao lado de Guedes.

Os ataques de ambos ao Inpe – Salles chegou a acusar o instituto de "sensacionalismo" e Pontes, além de exonerar seu presidente, Ricardo Galvão, ainda o desautorizou publicamente, via Twitter, quanto a divulgação de dados do avanço do desmatamento da Amazônia – atende a essa mesma lógica neoliberal, pois reafirma o lugar brasileiro dentro desse novo ciclo extrativista.

Desmontar a agenda de proteção do meio ambiente atende a demandas cada vez maiores de produtividade dos setores do agronegócio e mineração, visando o mercado externo. Os dados, informações ou debates (de natureza política) sobre outros modelos de desenvolvimento são descartados em nome da aplicação ortodoxa dessa forma de pensar o país.

Como disse acima, é parte de uma despolitização da esfera pública ver esse curso de ações no governo como "não ideológico", uma vez que sua apresentação como inexorável obediência a uma lógica acima das ideologias nada mais é que a afirmação de uma ideologia hegemônica. Despolitiza-se o debate público desqualificando como "ideológico" quaisquer formas de pensar o mundo distintas dessa racionalidade. Guardadas as devidas proporções, ficamos inertes, assim, diante de uma razão mecânica e desumanizada, como temiam Adorno e Horkheimer.

Concluindo, não há ala ideológica no governo. Ou melhor, todas as alas, incluindo a militar, não são ideologicamente neutras (isso sequer existe na prática política). Todos partem de algum pressuposto, seja para matérias de costumes ou relação com verdades científicas, seja com a economia.

O mais correto, talvez, seja denominar a ala de Damares Alves e Ernesto Araújo de "ala olavista ou neopentecostal-olavista", enquanto a de Marcos Pontes e Guedes de "ala neoliberal". Melhor assim que mascarar suas naturezas ideológicas, despolitizando o debate crítico sobre o governo.

Acrescento, ainda, que o que pode defini-los como ideologicamente fundamentalistas não é a matéria sobre a qual seus pressupostos se referem, mas a tomada deles como verdades inquestionáveis ou rumos incontornáveis, como verdades fechadas a contrapontos.

*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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