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Entendendo Bolsonaro

Discurso do centro político parte de uma falsa simetria

Entendendo Bolsonaro

10/01/2020 22h00

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é hoje a grande liderança do que se chama de "centro democrático" no Brasil (Crédito: Kleyton Amorim/UOL)

[RESUMO] Num Brasil crescentemente dividido entre a extrema direita de Jair Bolsonaro e a centro-esquerda representada pelos governos petistas, diversas lideranças têm procurado localizar o seu discurso no chamado "centro político", como maneira de se afastar do que chamam de "dois extremos". O diagnóstico deste campo, entretanto, é tão somente equivocado quanto ineficiente, já que parte de uma falsa simetria, igualando polos que nada têm de equivalentes, ao mesmo tempo que investe capital político na conservação de uma institucionalidade esgotada e rejeitada pelo eleitor médio.

*Igor Tadeu Camilo Rocha

Desde a definição do primeiro turno nas eleições presidenciais de 2018, certos críticos do bolsonarismo têm difundido a narrativa de que Bolsonaro e PT seriam "lados opostos da mesma moeda". Mais recentemente, após Lula afirmar que, sim, o PT deve polarizar contra o governo Bolsonaro, muitos tomaram essa fala como uma confirmação desse ponto.

Assim foi construído um pressuposto de que PT e Bolsonaro seriam dois projetos antidemocráticos e antiliberais à esquerda e à direita, respectivamente. Em resposta a ambos restaria um movimento ao centro, que seria democrático e liberal por rejeitar "extremismos".

Em objeção a essa narrativa "ao centro", críticos a ela forjaram o termo "doisladismo". Ele define uma posição política de parte da oposição ao bolsonarismo que é ancorada na estigmatização da polarização política, e que toma a moderação centrista como única alternativa razoável.

No centro da crítica, está a ideia de que, por mais que essa postura venha, muitas vezes, com verdadeiros sentidos democráticos, o doisladismo traz um grande problema em si, que é reduzir o debate político ao ponto de, na prática, colocar o próprio centrismo liberal de maneira dogmática e pouco aberta a projetos de mudança. Acaba por tornar-se, mesmo sem a intenção, num tipo de conservadorismo.

Assim, o doisladismo tornou-se uma leitura da atual política brasileira que une figuras das mais diversas do campo político. Desnecessário gastar linhas com tantos exemplos possíveis.

O ponto a ser tratado aqui é que o pressuposto de que PT e Bolsonaro são lados opostos da mesma antidemocracia não se sustenta.

O PT não é e nunca foi a outra extremidade do bolsonarismo e sequer podemos dizer, exceto em exemplos isolados e parcamente organizados, que exista algo à esquerda equivalente ao bolsonarismo em termos de rejeição à democracia – mesmo se tomarmos a perspectiva liberal, arendtiana, que iguala relativamente a antidemocracia à esquerda e à direita.

Além disso, qualquer narrativa construída sob tais pressupostos se sustentará de maneira frágil, e dificilmente oferecerá algo enquanto projeto político.

E se há algo equiparável é que o doisladismo é tão nocivo para a oposição ao bolsonarismo quanto os piores erros táticos e de avaliação conjuntural do PT.

Primeiramente, se concordamos que PSL, Bolsonaro e o bolsonarismo representam a extrema direita, para tomar o PT como sua antítese deveríamos, analogamente, identificá-lo extrema esquerda. Isso, sob qualquer definição séria da ciência política, é um completo absurdo.

Por "extrema esquerda", tradicionalmente, definem-se aqueles partidos e organizações à esquerda dos partidos comunistas criados a partir da III Internacional. Esses grupos, politicamente, caracterizam-se por seu caráter revolucionário e anticapitalista, crítico também ao caráter burocrático dos partidos socialistas, comunistas e/ou de esquerda que aceitaram a participação em parlamentos (ou seja, da democracia burguesa de natureza liberal) ao redor do mundo.

Vários propunham luta armada e outras formas de tomada de poder por vias que não sejam as oferecidas pelas democracias liberais, grande parte em reação a ditaduras, imperialismo e outras formas de opressão associadas ao capitalismo, como as lutas anticoloniais no século XX.

O PT em nenhum momento de sua história teve qualquer desses elementos. Pode-se argumentar que, dentro dos quadros petistas (assim como noutros partidos), há figuras que participaram da luta armada. Porém, isso é completamente distinto de o partido ter em seu programa alguma proposta de uma luta armada para promover mudança no sistema.

Além do mais, a despeito de um anticomunismo regurgitado pela extrema direita para atacar o PT, como aponta importante pesquisa do professor Rodrigo Patto de Sá Motta, nem mesmo naquela eleição de 1989 ou antes o partido tinha um programa anticapitalista. O PT sempre propôs, de maneiras e proporções variadas, mudanças na ordem capitalista brasileira. Trata-se de um projeto essencialmente reformista.

O partido nunca propôs, exceto em suas correntes minoritárias, uma ruptura com o capitalismo, nem por vias democráticas, como o caso chileno à época de Allende, muito menos pela ação direta de tomada de poder.
Sobretudo considerando as críticas à esquerda feitas ao PT, vemos o oposto a isso.

O PT, no poder, adotou agenda política que conciliava o combate à pobreza e o avanço de direitos sociais com o crescimento de grandes setores empresariais, como o agronegócio, mantendo a enorme desigualdade social brasileira no seu patamar histórico.

Mazelas que estruturam a hierarquização da sociedade brasileira, como a concentração de renda e fundiária, não sofreram mais que abalos mínimos. Reformas mais profundas, como a regulação da mídia ou a adoção de sistema tributário progressivo, tampouco aconteceram.

Para além do delírio do "PT extrema esquerda", existem muitos elementos que reforçam que o bolsonarismo e o PT estão longe de serem essas faces opostas do mesmo problema. A prática de seus parlamentares, por exemplo, não deixa dúvidas quanto a isso.

Não há equivalente entre os que representam o Partido dos Trabalhadores de falas sobre a simples necessidade de um soldado e um cabo para fecharem o Supremo Tribunal Federal. Nem repetidos atos de depredação de peças ou monumentos que homenageiam figuras que tenham sido vítimas de crime político, como deputados do PSL fizeram quanto à vereadora assassinada Marielle Franco.

Ao contrário do bolsonarismo, nunca os petistas testaram tanto qual seriam os limites daquilo que é aceitável dentro de uma democracia liberal. Não que petistas não utilizem retórica que inflame seus militantes. Não raras vezes, e sobretudo nas eleições, lideranças do PT pesam o tom de aspectos à esquerda de seu programa e pontos à direita de seus adversários, como tantas vezes fizeram contra o PSDB ou como quando atacaram Marina Silva, em 2014.

O mesmo se pode dizer do discurso que "faz o jogo da direita" a fim de blindar-se de críticas de sua própria militância, como tem feito, sobretudo, a partir das irrupções de 2013. A questão é que existe um abismo entre essas criticáveis práticas e, por exemplo, falar-se da "possibilidade" de um novo AI-5 em caso de "radicalização da esquerda".

Mesmo nos embates com a imprensa, que foram intensos nos governos do PT – como esquecer a ideia do "Partido da Imprensa Golpista", por exemplo? –, há diferenças substanciais. O PT, no geral, optou por uma guerra de narrativas, também ocupando alguns espaços na imprensa, tentando criar um contraponto aos grupos de mídia tradicionais, associados por eles à direita política.

É necessário criticar a ética ou não do procedimento de militâncias petistas, nesse ponto, ao rotular jornalistas de diversas formas quando estes criticaram – muitas vezes sem, mas diversas outras vezes com razão – os governos petistas. Mas isso também não é equiparável a, por exemplo, os ataques a jornalistas da Folha de S. Paulo, em 2018, por eles terem assinado matérias críticas a Jair Bolsonaro.

Nem equipara-se aos ataques diretos do próprio presidente a jornalistas usando informações falsas ou sugerindo que informações verdadeiras sobre seu governo viriam somente de divulgadores de teorias da conspiração.

Bolsonaro disse que "jornalistas são uma raça em extinção" e que "envenena a gente ler jornal", enquanto chama a atenção da imprensa mundial ao ter nos quadros de seu governo notórios divulgadores de notícias falsas e teorias conspiratórias – lunáticos, fanáticos e perigosos, como ressaltou o The Guardian.

Tampouco houve, sob governos do PT, qualquer coisa similar às insinuações do atual presidente sobre não renovar a concessão da Rede Globo, ou a um aumento tão substancial de verbas de publicidade governamental a uma emissora abertamente aliada, como é o caso do governo Bolsonaro com a Record.

Muito menos se observou nos governos petistas um anti-intelectualismo tão marcado quanto o que se tem sob Bolsonaro, que rejeita dados de institutos como Inpe, Fiocruz e IBGE, ou que empodera ministros empenhados em destruir o consenso científico de suas próprias áreas – como é o caso de Weintraub e Damares.

Enfim, PT e Bolsonaro, por mais que o doisladismo diga o contrário, não são lados opostos da mesma moeda. E defender isso tem um preço potencialmente alto no que toca conquistar consciências com um projeto político alternativo ao bolsonarismo.

O resultado do discurso do doisladismo para essa centro-direita que quer criar uma alternativa liberal moderada ao bolsonarismo é incorrer num erro duplo: primeiro, de igualar um adversário no campo político democrático a um inimigo da própria democracia, tanto institucionalmente quanto na sua prática; segundo, de não oferecer alternativa de futuro, mas conservação de uma institucionalidade da qual o esgotamento e a rejeição por milhões elegeu o bolsonarismo como alternativa.

*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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