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Entendendo Bolsonaro

Caos no Ceará é sintoma da bolsonarização das polícias

Entendendo Bolsonaro

20/02/2020 23h23

Antes de ser baleado, o senador Cid Gomes (PDT-CE) tentou convencer policiais grevistas a desocuparem quartel em Sobral (CE) (Crédito: Wellington Macedo/Estadão Conteúdo)

*Murilo Cleto

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ainda não condenaram a paralisação de policiais por reajuste salarial no Ceará. Como se sabe, o movimento já é nascido inconstitucional, dado o caráter militar da corporação.

Nas redes sociais, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho do presidente, defendeu o motim e chamou de "legítima defesa" o disparo que atingiu Cid Gomes, senador pedetista que, no auge da crise, tentou furar o bloqueio policial com uma retroescavadeira e foi ali mesmo alvejado por dois tiros

Além de Flávio, os outros dois filhos do presidente, juntamente ao ministro Onyx Lorenzoni – este último em live nesta quinta (20) ao lado de Bolsonaro – , também justificaram os disparos.

O que o episódio escancara, na verdade, é um grave processo de bolsonarização das polícias no Brasil. Essa afirmação pode soar surpreendente para alguns, mas é um erro considerar que a eleição de Bolsonaro, em 2018, tenha significado simplesmente a ascensão dos militares ao poder.

As PMs brasileiras evidentemente têm muitos problemas, mas, especialmente num Estado Democrático de Direito, estão submetidas a órgãos de controle social que podem, ainda que minimamente, fiscalizar suas ações e coibir abusos.

Em 1997, o horripilante caso da favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo, mostrou que, com liberdade de imprensa, instituições independentes e órgãos do Poder Executivo sob o escrutínio da opinião pública, é possível tirar das ruas policiais que estão a serviço de outra coisa que não a garantia da lei.

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Trata-se de uma excepcionalidade, claro – afinal é difícil que se registrem em áudio e vídeo todas as abordagens –, mas é possível. E é possível também melhorar. Em última instância, os comandantes das polícias estão subordinados a chefes de Estado, que, por sua vez, são chancelados pelo voto.

Mas o bolsonarismo é outra coisa. Jair Bolsonaro começou a carreira política justamente depois de se insurgir contra o exército. Seus heróis não são exatamente os grandes ditadores da direita, mas torturadores – aqueles que agiam nas sombras para adulá-los.

Numa elaboração muito precisa para pensar a estrutura de funcionamento do bolsonarismo, o jornalista Bruno Torturra recorreu sabiamente ao termo "capanguismo" para caracterizar esse organismo que está sempre à procura de um líder para seguir; indisposto a cumprir normas básicas sociais; e desafeito às mediações promovidas pela política institucional. É isso, diz Torturra, que o distingue de um fascista convencional.

Nesse sentido, a relação umbilical da família Bolsonaro com as milícias é emblemática.

As milícias são basicamente uma fase dos grupos de extermínio que surgiram no fim dos anos 1960 no Rio, ainda na esteira do golpe militar, com o apoio da ditadura e o financiamento de empresários locais, oferecendo os serviços de matadores de aluguel.

Hoje, elas protegem negócios, empresários e propriedades, mas também extorquem moradores, grilam imóveis e traficam drogas. Amigo, empregador e homenageador de milicianos, Bolsonaro é a antítese do que significam – ou deveriam significar – as corporações militares.

O bolsonarismo não sabe o que é uma ouvidoria. Aliás, até sabe, mas rejeita. E rejeita porque quer ver na atividade policial um espelho do que tanto admira no jagunço. Até agora, a principal proposta de Bolsonaro para a segurança pública é dar carta branca para a polícia matar. Não tem outra, pode procurar.

Como mostra no Estadão o jornalista Marcelo Godoy, essa ideologia tem invadido os quartéis. Godoy usa como baliza o caso real de um manifestante que protestava contra a presença do presidente Bolsonaro num evento com um exemplar da Constituição na mão e, ameaçado pelos fãs do político que estavam no local, acabou detido.

Esses PMs, diz o jornalista baseado no depoimento de um oficial prestes a se aposentar, "veem em Bolsonaro o vingador de décadas de 'infâmias' que lhes foram lançadas por estudiosos de universidades, pela imprensa, por liberais e pela esquerda". Distantes do que ensina a maioria dos manuais de formação, se inspiram em exemplos como o do sargento Fahur e do coronel Tadeu para ofender adversários, pessoalmente e nas redes sociais, e defender abertamente o extermínio de grupos marginalizados.

Números recentes têm revelado que esse processo está longe de ser apenas retórica para angariar votos e seguidores. A letalidade das polícias aumentou e em algumas regiões periféricas já é maior do que a marginal. Nem seria preciso dizer que essa lógica, algo próximo de um western trágico e sem nenhuma graça, também multiplica a produção de cadáveres fardados. Fora os demagogos de terno, ninguém ganha.

Nessa segunda (20) o repórter Rafael Soares revelou ao Extra que, antes de matar um PM na semana passada, um traficante foi libertado depois de sofrer extorsão de policiais do Bope – que não o levaram para delegacia – numa praia deserta na região dos Lagos, no Arraial do Cabo.

Do Ceará, cenas aterrorizantes chegam ao país de policiais encapuzados dando toque de recolher e exibindo armas em tom ameaçador. Elas lembram – e muito – o Rio de Janeiro durante algumas de suas mais graves crises. E não é muito simples distinguir nelas um oficial de um traficante qualquer. Segundo o jornal O Povo, um dos amotinados colocou fogo no carro de uma mulher porque ela criticou o movimento na internet.

Surpreendente mesmo seria se nessa crise o bolsonarismo se colocasse em defesa da institucionalidade. Bolsonaro não condena o motim porque esse é justamente o projeto. Em todas as oportunidades que teve, ele endossou movimentos similares, mesmo sabendo – e talvez sobretudo por saber – da sua flagrante ilegalidade. Foi assim no Espírito Santo em 2017; tem sido assim agora; e vai ser assim até alguém perceber que na próxima pode ser tarde demais.

Se quiser sobreviver enquanto instituição, não parece haver alternativa: ou as polícias se desbolsonarizam, ou simplesmente perdem a razão de ser.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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