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Entendendo Bolsonaro

O que defendem, afinal, os bolsonaristas?

Entendendo Bolsonaro

10/03/2020 23h42

(Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR)

[RESUMO] Historiador faz breve retrospectiva da atuação e dos discursos de Bolsonaro num momento de letargia diante do pânico no mercado financeiro e em que o ministro da Economia chama os brasileiros às ruas em favor de reformas.

* Murilo Cleto

"Esse Congresso melhorou muito em relação ao do passado, em especial graças ao atual presidente Eduardo Cunha, que aprovou uma proposta de emenda constitucional que trata do orçamento impositivo. Ou seja, o governo não chantageia mais o Executivo para liberar nossas emendas". O autor dessa sentença é Jair Bolsonaro, então deputado federal, em entrevista à jornalista Mariana Godoy, na Rede TV!.

Corria o ano de 2015, quando a crise política ia ganhando musculatura e a extrema-direita brasileira, finalmente um rosto. Na ocasião da entrevista, em julho, a aprovação de Dilma chegava à marca de apenas um dígito – de onde nunca mais saiu. 9%, segundo o Ibope; e 8%, nas contas do Datafolha. Essa também era a primeira vez que Bolsonaro pontuava numa pesquisa eleitoral rumo à presidência: 4,6%, de acordo com a CNT/MDA. Menos de um ano depois, ele já era o candidato preferido entre os mais ricos.

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O conteúdo da entrevista de Bolsonaro a Mariana Godoy voltou a circular agora que, mais uma vez, os governistas se articulam para manifestações de rua contra o Supremo e o STF no final de semana. Embora já agendados antes disso, os protestos ganharam fôlego depois que o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, foi flagrado por transmissão ao vivo do próprio governo chamando deputados de chantagistas. A conversa era sobre a Proposta de Emenda Constitucional do Orçamento Impositivo, aprovada pelo Congresso em junho e cujos vetos presidenciais seriam discutidos em breve no Legislativo.

Apesar das pequenas alterações no texto, a ideia de um orçamento impositivo foi sempre celebrada pelos bolsonaristas. Primeiro em 2015, quando Dilma era presidente e tornou-se obrigatória, então, a execução de emendas parlamentares individuais; e depois até meados de 2019, quando o PSL – até então partido do presidente – votou em peso a favor da proposta, tanto na Câmara quanto no Senado. O próprio Eduardo Bolsonaro compartilhou um vídeo em suas redes sociais enaltecendo, no plenário, Rodrigo Maia pela condução dos trabalhos e dizendo que aquela era uma demonstração de harmonia entre os poderes.

O principal argumento dos agora governistas em favor de um orçamento impositivo sempre foi o de que o modelo antigo de distribuição de emendas privilegiava o "toma lá, dá cá" – como se convencionou chamar as trocas de favores entre Planalto e Congresso no presidencialismo de coalizão. O sistema privilegiou a liberação de recursos a deputados justo às vésperas de votações importantes para o governo e a nomeação de aliados sem conhecimento técnico ou de gestão em áreas vitais do serviço público.

Para se ter uma ideia dessa realidade levada às últimas consequências, a conta para livrar o então presidente Michel Temer da segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República chegou a R$ 12 bilhões, segundo O Globo – só de emendas o governo federal liberou R$ 881 milhões. Bolsonaro, que votou contra o indeferimento do pedido de Janot nas duas ocasiões, se destacou entre as alternativas na corrida à presidência justamente por se colocar de modo explícito contra esse modelo, o que lhe garantiu o forte apoio de movimentos anticorrupção dentro e fora do poder Judiciário – incluindo, como hoje se sabe, membros da força-tarefa da Operação Lava Jato.

Mas durou pouco a agenda anticorrupção de Bolsonaro. Depois de fingir uma queda de braço com o Congresso sobre o comando do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que, dentre outras coisas, apontou movimentações suspeitas na conta de Fabrício Queiroz, assessor de Flávio Bolsonaro, o governo se desfez do órgão e ele só reaparece nos noticiários quando o filho do presidente resolve recorrer ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Supremo Tribunal Federal para trancar as investigações do caso. Já foram nove vezes até aqui – e contando.

Tudo do jogo, claro, não fossem as incontáveis declarações de Flávio e Jair Bolsonaro contra o foro privilegiado – um dos argumentos da sua defesa agora –, o direito de ampla defesa e a presunção de inocência. O pai aparece, num vídeo publicado por Eduardo Bolsonaro, filmando o filho defender, na tribuna da Câmara, em 2016, as 10 Medidas Contra a Corrupção propostas pelo Ministério Público Federal que, dentre outras coisas, criminalizava o caixa 2. "Quem não deve, não teme" é a legenda do post. Essa também é a descrição de uma foto dele com o "Japonês da Federal", que acabou sendo preso quatro meses depois. Mas essa é outra história.

Foi também em 2016, no auge da crise política, que o então juiz Sergio Moro dizia que o caixa 2 é ainda pior que a corrupção. Com menos de dois meses de governo, o agora ministro Moro já tinha mudado de ideia. No centro do debate já estava o início da tramitação do famoso "pacote anticrime", que o governo deu a entender que trataria como prioritário, mas cedeu com tranquilidade até em pontos considerados nevrálgicos para os lava-jatistas – como a prisão após condenação em 2ª instância. Os acordos foram costurados no Congresso, inclusive com a participação de deputados de esquerda, e nenhum bolsonarista foi para a rua protestar.

Sabendo que Dilma poderia indicar um número recorde de ministros para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro votou a favor da PEC da Bengala para adiar as aposentadorias prestes a vencer na Corte. Foi vencer as eleições que sua base aliada passou a cogitar a revogação.

Mas essas não são, nem de longe, as únicas modulações do pensamento bolsonarista na história recente do Brasil. Na economia, elas são fundamentais para colocar em perspectiva a frustração com o cenário atual.

A despeito de todas as evidências, Bolsonaro intensificou, a partir do governo Dilma, os ataques ao Bolsa Família: "O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder", disse em 2011 enquanto agradecia os nove votos que recebeu para presidir a Câmara na ocasião. Na campanha, mudou o tom e no ano passado chegou a conceder uma espécie de 13º aos beneficiários, mesmo alertado por técnicos de que não tinha recursos para isso.

E a reforma da Previdência? Já em 2018, quando estava em vigor a campanha eleitoral e o governo Temer desistia de aprovar sua versão, Bolsonaro disse que fixar a idade mínima para a aposentadoria em 65 anos seria "falta de humanidade". Como deputado, o capitão reformado votou contra alterações na Previdência em todas as oportunidades que teve. Ao todo, foram seis. Muitos dos que estiveram nas ruas em maio passado disseram que lá estavam pela aprovação do texto proposto pelo governo – que, ao contrário da promessa, não serviu para extinguir privilégios. E 65 anos agora é a idade mínima.

Talvez para imitar Trump, Bolsonaro disse diversas vezes em campanha que os chineses não estavam comprando no, mas o Brasil. Um ano depois, ele foi para lá oferecer as estatais brasileiras. Enquanto isso, o programa de concessões avança a passos de tartaruga.

Há quem insista que a inércia na agenda econômica é culpa dos outros poderes, nesse caso o Congresso. É difícil pensar numa conversa mais fiada: a MP da Liberdade Econômica passou fácil e a reforma da Previdência aconteceu com um protagonismo inédito na história da democracia brasileira. Em que pese a legítima prerrogativa que todo parlamento tem de divergir do Planalto, se fossem feitas dez novas eleições para o Legislativo, seria muito difícil encontrar um tão simpático ao governo quanto esse em matéria de economia. Ou melhor, no que Bolsonaro deu a entender que seria a sua agenda econômica. E talvez esteja justamente aí a natureza do problema.

Desde que se colocou como candidato à presidência, Bolsonaro teve inúmeras oportunidades de contar para os 210 milhões de brasileiros o que faria para tirar o país da crise. A primeira deve ter sido diante de Marco Antonio Villa, na Jovem Pan, em maio de 2017. Como com Mariana Godoy – onde ele voltou em outubro do mesmo ano para fugir de uma pergunta sobre o tripé macroeconômico –, foi um espetáculo dantesco. Mas tudo bem, sua candidatura ainda era uma realidade distante. Aos que perguntavam, o ainda presidenciável Jair Bolsonaro dizia que não era economista e que escolheria técnicos capacitados para a condução da agenda.

Gostava de dizer, inclusive em campanha, que também não era médico e nem por isso deixaria de fazer uma boa gestão na saúde. Suas propostas para essa área foram explicitadas no Roda Viva de julho de 2018: estímulo à escovação de gestantes e menos impostos para gerar mais empregos e as pessoas não precisarem tanto de hospitais.

A economia era uma pedra tão grande no sapato de Bolsonaro que em, em novembro de 2017, o Estadão noticiou que o professor Adolfo Sachsida, hoje secretário de Política Econômica, tinha sido contratado para lhe dar aulas de economia básica – ambos negaram depois. Mas o fato é que agentes do mercado financeiro se animaram com a notícia, afinal Bolsonaro vinha flertando há tempos com uma orientação mais liberal na economia, a despeito do seu histórico estatista e corporativista na Câmara.

Para consolidar a inflexão, o "Chicago Boy" Paulo Guedes aderiu à campanha em fevereiro de 2018. Mas também não adiantou muito: se, por um lado, Bolsonaro disse que só falaria pela campanha o seu futuro ministro da Economia, por outro, quando ele falou, ganhou de presente uma geladeira depois de se empolgar cogitando a volta da CPMF. Mesmo assim, choveram previsões otimistas, repercutidas na época como notícia, projetando dólar baixo e PIB lá nas alturas.

Foi golpe de ilusionismo. Mesmo aprovando quase tudo que quis, o governo não foi capaz de apresentar um crescimento superior a 1,1% – o pior resultado em três anos. O dólar, por sua vez, caminha a passos largos para chegar a R$ 5. As justificativas do governo foram catastróficas. Sobre o PIB, inventou-se uma constrangedora divisão entre fatias pública e privada do indicador; sobre o dólar, pior ainda: noutro desvio drástico de rota na retórica bolsonarista, Guedes reclamou das empregadas domésticas indo, segundo ele, toda hora para a Disney com a cotação baixa. E milagrosamente o dólar alto virou uma coisa boa.

Diante do caos recente na bolsa, Guedes disse que as reformas são a resposta para a crise. Dias atrás ele já havia pedido que os movimentos pró-governo transformem os atos do próximo dia 15 – cujas convocações nas redes sociais pedem o fechamento de Congresso e STF – em atos pró-reformas.

A despeito de todas as barbeiragens até aqui, vamos supor que a sociedade brasileira esteja engajada na ideia e disposta a dar mais esse voto de confiança ao ministro. A pergunta que fica é: que reformas? Mais de um ano e dois meses de mandato e até hoje o Planalto não enviou uma única proposta para reformar o sistema tributário mais caótico do mundo.

Excetuando a ofensa aos servidores públicos, chamados de "parasitas" por Guedes, não se tem mais nada sobre uma reforma administrativa. Quem está mais madura mesmo é a PEC Emergencial, aparentemente um desastre em tempos que demandam mais e não menos investimentos.

Até agora também nenhum sinal de revisão da Emenda Constitucional que estabeleceu, ainda durante o governo Temer, um teto de gastos públicos. Não tem reformas anticíclicas, não tem reformas liberais. Não tem nada. E não tem nada não porque Bolsonaro não é economista, como disse seguidas vezes em campanha, mas porque sua candidatura nunca teve diretrizes claras. Porque renunciou ao pacto necessário que as eleições consolidam, especialmente depois de anos de crise.

Enquanto candidaturas mais ao centro pagaram o preço por propor medidas técnicas num momento em que o debate público era feito com o fígado, Bolsonaro nadou de braçada na polarização apostando numa agenda puramente antagonista. Geraldo Alckmin perdeu tempo falando de IVA – ninguém queria ouvir. Mas ele estava certo: eleição deveria ser para isso mesmo.

Num relatório de setembro de 2018, o Monitor do Debate Público no Meio Digital, da USP, revelou que, durante os primeiros quarenta dias de campanha eleitoral no Facebook, 80% dos compartilhamentos de publicações temáticas da página oficial de Bolsonaro ou de seus principais simpatizantes serviam apenas para achincalhar com feminismo, petismo (ou esquerdismo) e Rede Globo.

O restante, em menor escala, se dedicou a enaltecer armamento; difundir pânico moral em torno da sexualização das crianças; colocar em dúvida as urnas eletrônicas; atacar genericamente a corrupção. Segundo a pesquisa, que avaliou 38 milhões de compartilhamentos de 41 mil publicações, "praticamente não há menção a pautas de política econômica ou de política social, com exceção de uma publicação com poucos compartilhamentos defendendo a desburocratização".

Bolsonaro, sobre isso, aliás, se limitava a dizer que precisava "desburocratizar muita coisa". Sobre os juros, que era preciso abaixar. Dizer que precisa reduzir juro alto é como dizer que seria bom ter menos assaltos. O papel do candidato é justamente o de mostrar como fazer – para ter menos assaltos e juros mais praticáveis. Essa foi uma das únicas candidaturas que deliberadamente se recusaram a mostrar. E pra isso não era preciso ser um tecnocrata. Era preciso ter uma agenda. Porque as urnas a legitimam depois, quando as coisas precisam ser resolvidas.

Quando perguntado na GloboNews sobre o subsídio no diesel, em resposta à greve dos caminhoneiros, Bolsonaro tergiversou. Falou até de multa para não ter que falar de subsídio. Voltou à conversa mole de não ser médico. O resultado depois? Uma bagunça: preço oscilando, caminhoneiros insatisfeitos e o presidente mandando segurar o aumento para evitar desgastes. Bolsonaro apoiou a greve. E foi em grande medida apoiado por ela. Para se equilibrar, colocou cada pé numa canoa (a do liberalismo e a do intervencionismo), nem que o custo seja afundar o Brasil.

O brasileiro vai acabar aprendendo na marra que o papel do bolsonarismo não é o de resolver o caos, mas de chafurdar nele. Porque sem caos um projeto desses não se elege e, principalmente, não se sustenta depois de chegar ao poder. Foi o pânico tomar conta dos analistas econômicos no início da semana que o presidente, sem solução alguma para a crise, ressuscitou do nada as acusações até hoje nunca comprovadas de fraude nas urnas – de uma eleição que ele mesmo ganhou!

No auge da tensão no mercado, na segunda (9), Carlos Bolsonaro publicou um vídeo debochando do liberalismo. Foram poucos os que perceberam a tempo que a orientação liberal não passou de escada para antagonizar com a crise de um modelo com maior protagonismo estatal sem ter nada de concreto para pôr no lugar. Menção honrosa ao Livres, que deixou o PSL para não se associar ao candidato cuja única pauta sólida é o apoio a um regime ditatorial.

Evidentemente, todo mundo muda de opinião. Faz parte do jogo e é bom que seja assim, sobretudo na política. Mas é preciso ter o mínimo de sensibilidade para notar quando essas modulações são, de fato, resultado de uma mudança de percepção ou se esses são sinais trocados que, na prática, só indicam culto à pessoa do presidente, com pautas convenientemente adaptadas aos seus interesses particulares – e, a cada dia que passa, defendidas com mais truculência.

Então fica aí o questionamento, que, quem sabe, as ruas possam responder neste fim de semana: fora extinguir a oposição, calar cientistas, perseguir professores, censurar a imprensa e bater palma para qualquer coisa que o presidente faça, o que defendem, afinal, os bolsonaristas?

* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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