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Entendendo Bolsonaro

Covid-19: Projeção de mortes fez Inglaterra rejeitar argumento de Bolsonaro

Entendendo Bolsonaro

17/03/2020 17h42

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (Crédito: Rafael Carvalho)

* José Antonio Lima 

O presidente da República, Jair Bolsonaro, e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, defendem como estratégia para combater a pandemia de Covid-19 um plano adotado pelo governo do Reino Unido na semana passada e abandonado quatro dias depois. O motivo da mudança em Londres? A política inicial – abertamente apoiada por Bolsonaro e Guedes – poderia provocar centenas de milhares de mortes.

Na semana passada, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, colocou em prática uma estratégia contra o novo coronavírus que ganhou o apelido de "mitigação". Pessoas com o sintoma da doença deveriam ficar em casa por uma semana, mas, para além disso, os britânicos deveriam tocar suas vidas normalmente, usando o transporte público, frequentando escolas, universidades, espetáculos e restaurantes.

"Mitigação"

A ideia por trás do plano era retardar, mas não impedir, a propagação da epidemia, de modo a construir a chamada "imunidade de rebanho" – enquanto os mais vulneráveis seriam protegidos, a maior parte da população ganharia imunidade ao coronavírus. Com o passar do tempo, esperava-se, a doença estaria, no geral, mitigada.

Essa estratégia fora recomendada por pesquisadores da Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Londres e do Imperial College, duas prestigiadas instituições inglesas. Na segunda-feira (16), no entanto, esses pesquisadores informaram ao governo britânico e à imprensa local que tal estratégia pode culminar em um significativo desastre.

"Estávamos esperando a imunidade do rebanho ganhar corpo. Agora percebemos que não é possível lidar com isso", disse Azra Ghani, responsável pelo departamento de Epidemiologia de Doença Infecciosas do Imperial College. De acordo com os especialistas, cálculos atualizados indicaram que a estratégia da "mitigação" poderia resultar, apenas no Reino Unido, em um colapso do sistema de saúde e também em 260 mil mortes.

"Supressão"

Diante do alerta, também na segunda-feira, Boris Johnson mudou a estratégia. A partir da semana que vem, idosos, mulheres grávidas e outras pessoas vulneráveis devem ficar 12 semanas sem sair de casa. Além disso, medidas mais extremas, como toque de recolher obrigatório, fechamento de escolas e proibições de viagens estão sendo estudadas.

Tratam-se de medidas que seguem o protocolo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotado por dezenas de governos até aqui. Esses países estão, cada um a seu modo, recomendando e impondo medidas de distanciamento social a suas populações. A ideia dessa estratégia, agora apoiada também pelos pesquisadores britânicos, é a da "supressão" do Covid-19.

O chamado distanciamento social fará com que a doença circule menos, "achatando a curva" de crescimento do número de infectados. Desta forma, os sistemas de saúde terão mais capacidade para tratar os doentes pelo novo coronavírus e também outros pacientes necessitados – as pessoas vão continuar a sofrer acidentes e a ter ataques cardíacos durante a epidemia.

Um estudo divulgado recentemente por pesquisadores da Universidade Oxford, também no Reino Unido, mostrou os efeitos do distanciamento social. As províncias de Lodi e Bergamo estão entre as primeiras que começaram a sofrer com o coronavírus na Itália. A primeira impôs medidas de distanciamento social em 23 de fevereiro. A segunda, apenas em 8 de março. Em 13 de março, Lodi tinha 1.133 casos, contra 2.368 de Bergamo.

Bolsonaro, Guedes e a escolha mortífera

No Brasil, no entanto, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes continuam a defender a estratégia que, no Reino Unido, culminaria com 260 mil mortos. Detalhe: a população britânica é de 66 milhões, enquanto a brasileira supera 200 milhões, o que poderia ensejar um número ainda maior de mortes por aqui.

Na segunda, ao anunciar um plano para combater o impacto econômico da epidemia, Guedes minimizou o risco representado pelo Covid-19, insistindo que se tratava de uma doença com "baixíssima letalidade". E defendeu que a população leve sua vida normalmente, contrariando as medidas recomendadas pela OMS e adotadas por diversos países.

"Os mais idosos vão para casa, os mais jovens podem circular, têm mais saúde, mais defesa imunológica, e a economia consegue encontrar um meio termo. Porque se ficar todo mundo em casa, o produto (PIB) colapsa", disse.

Na sequência, Guedes confirmou que a inspiração de seu raciocínio era o governo britânico. "Os ingleses andaram sugerindo o seguinte: os mais idosos em casa, e os mais jovens vamos trabalhar, tentar manter vida próxima do normal. Eu, como economista, me parece interessante a hipótese, mas não sou eu quem vai falar isso. Quem tem que falar isso realmente é o Ministério da Saúde, que vai dar a melhor orientação", afirmou.

Ocorre que Guedes falou, e seu peso na tomada de decisões do governo Bolsonaro é alto. Soma-se a isso o fato de que, antes da crise, o governo vinha sendo pressionado pelo fraco desempenho da economia, uma situação que muito provavelmente guia o pensamento do Planalto.

A relevância da argumentação de Guedes pôde ser percebida na manhã desta terça-feira (17). Mesmo após o governo do Reino Unido abandonar a estratégia da "mitigação" para não matar 260 mil pessoas, Bolsonaro defendeu esse modelo, ecoando a ideia da "imunidade de rebanho" abandonada pelos britânicos.

"O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil, por exemplo, só estará livre quando um certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos", disse Bolsonaro à Rádio Tupi.

A negligência é deliberada

A postura de Bolsonaro e Guedes é preocupante, pois – não é exagero repetir – é o inverso do que defendem a OMS e dezenas de governos. Quem está liderando o combate ao novo coronavírus no Brasil são os governos estaduais, cuja capacidade de atuação é, por óbvio, inferior à do governo federal.

Isso não significa que o Ministério da Saúde não esteja ciente da gravidade da situação. Em 11 de março, o ministro Luiz Henrique Mandetta destacou que o país vai passar por um difícil e muito longo período de enfrentamento ao coronavírus. "Vai ser duro. Vão ser mais ou menos umas vinte semanas duras", disse.

No dia seguinte, Mandetta foi aos líderes do Congresso pedir a liberação de recursos especiais para sua pasta. Aos presidentes da Câmara e do Senado, o ministro enfatizou que a "contaminação pelo coronavírus se dará em progressão geométrica" e que "a situação é alarmante".

Ao mesmo tempo em que Mandetta fazia esses alertas, era desautorizado por Bolsonaro – na prática e na retórica. Em 10 de março, o presidente disse que a epidemia era uma "fantasia" impulsionada pela "grande mídia".

No último fim de semana, Bolsonaro rompeu a quarentena que deveria ter imposto a si mesmo e saiu para cumprimentar apoiadores que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal – ou seja, a instauração de uma ditadura. O presidente fez isso apesar de 14 integrantes de sua comitiva terem testado positivo para o novo coronavírus.

Fez isso, também, apesar das crescentes evidências de que são as pessoas sem sintomas da doença os principais responsáveis pela transmissão do Covid-19. Reportagem do jornal O Globo destacou, na segunda-feira, um estudo publicado na revista Science segundo o qual os cidadãos assintomáticos são o motor que move a epidemia. Os sem sintoma – em sua maioria os jovens que Paulo Guedes quer ver na rua – são responsáveis por dois terços das infecções, de acordo com o estudo.

A desorganização do governo federal e a falta de uma posição em comum talvez ajudem a explicar as atitudes de muitas pessoas que, ainda hoje, insistem em frequentar shows e praias lotadas, por exemplo. Também ajudam a entender porque algumas empresas ainda não determinaram trabalho remoto a seus funcionários.

A crise do coronavírus que provoca a Covid-19 é uma situação que provavelmente terá impactos econômicos, sociais, políticos e geopolíticos de grande monta. A essa altura, tudo leva a crer, será uma experiência coletiva fora do comum, talvez até capaz de marcar a existência de uma geração inteira. As decisões tomadas agora dirão o impacto que cada país sofrerá.

* José Antonio Lima é doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor de Jornalismo e Relações Internacionais.

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