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Entendendo Bolsonaro

E. Bolsonaro x China: Numa crise, o conspiracionismo pode custar vidas

Entendendo Bolsonaro

19/03/2020 15h40

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

*Igor Tadeu Camilo Rocha

A Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou que o mundo passa por uma pandemia do novo coronavírus, e seus terríveis efeitos têm sido vistos em tempo real, ocupando maior parte dos noticiários nas últimas semanas.

Apesar de as emissoras terem aumentado seu tempo de cobertura jornalística e alguns portais terem desativado seu paywall para matérias sobre a pandemia, atendendo assim ao interesse público de informar a respeito do coronavírus, uma onda de desinformação avança junto com o novo vírus.

O mais novo episódio envolve um atrito gerado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro no Twitter. De maneira gratuita, o "03" acusou, sem provas, a China de ter omitido informações sobre a pandemia, o que gerou reação imediata da Embaixada do país, além de lideranças, inclusive do vice-presidente Hamilton Mourão.

Além dos óbvios riscos à relação de longo prazo entre o Brasil e a China, nosso maior parceiro comercial, o caso, como mostrou o jornal O Globo, preocupa o governo num momento em que o Ministério da Saúde reúne esforços para atrair ajuda chinesa com equipamentos e insumos médicos para a crise do coronavírus.

Agências de verificação de notícias falsas e teorias conspiratórias circulantes nas redes sociais, como a Lupa e a Boatos.org têm atualizado quase que diariamente sua lista de "fatos alternativos" compartilhados sobre a pandemia, crenças estas que, antes de Eduardo, já haviam encontrado ecos no bolsonarismo.

Como mostrou o colunista do UOL Tales Faria, o atual presidente Jair Bolsonaro, antes de conduzir uma reação institucional mais robusta após a primeira morte por Covid-19 no Brasil, estava convencido de que a pandemia que assola o mundo seria parte de um plano do governo chinês.

Além disso, como mostrou a Folha recentemente, tais crenças circulam entre lideranças e influencers de extrema direita brasileiros, europeus e estadunidenses. Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, se referiu ao coronavírus por "chinese virus" em tweet do último dia 17 de março.

As teorias de conspiração, como a de que o coronavírus é parte de um grande plano do governo da China contra as economias do Ocidente, são, historicamente, parte da formação de visões de mundo de grupos radicais e sectários de determinadas ideologias políticas.

Um estudo dos mais aprofundados sobre o assunto foi feito por Jovan Byford, professor no departamento de Psicologia da Open University (Reino Unido). Seu estudo sobre teorias de conspiração, "Conspiracy theories: A critical introduction (2011)" servirá aqui de base para uma breve reflexão sobre como teorias conspiratórias como essa funcionam na retórica do bolsonarismo.

Embora Byford parta da discussão de que conspirações, em si, não sejam algo novo na história da humanidade, existem algumas características que tornam as chamadas teorias de conspiração modernas distintas, tanto na sua construção retórica como nos efeitos que causa nos grupos que as compartilham. São três características essenciais das teorias conspiratórias modernas que dão base para aquilo que o autor chama de pensamento conspiratório, termo que explicarei brevemente mais à frente.

A primeira característica é que as teorias conspiratórias se constroem como uma espécie de motor da história. Na visão conspiratória do mundo, todos os eventos acontecem movidos por um grande plano, realizado por agente que, apesar de identificável, é vagamente delimitado. Esse agente, no geral, é representado nas teorias como dotado de uma capacidade incrível de conluio e uma quase onipresença em todos os campos, fazendo com que sua agência sobre a realidade seja quase absoluta.

Exemplificando para que se fique mais claro. Pensemos na teoria conspiratória mencionada. Temos a teoria como um motor da história: a crise é provocada pela guerra biológica disfarçada de pandemia, e esta não aconteceu por motivos como, por exemplo, desequilíbrio ecológico. Ela tem agentes identificáveis, porém vagos, sem nome. São os "chineses", supostos criadores do vírus, e a mídia, que age organizada e univocamente para disseminar o pânico. O objetivo do plano, claro, a destruição da economia do Ocidente.

Importante reparar que nessa visão de mundo, novamente aludindo à obra de Byford, não há espaço para conflitos dentro do grupo de agentes "conspiradores". Tanto o governo chinês para espalhar o vírus esperando vantagens econômicas como a "mídia" a fim de espalhar a histeria são conjuntos de pessoas que trabalham basicamente sem divergências, em total harmonia com o plano conspiratório.

A segunda característica está na relação ambígua da teoria conspiratória com a prova. Quem se apega às formas conspiratórias de ver o mundo não o fazem alheios à necessidade delas. Sabemos que atividades variadas que lidam com provas – historiadores, jornalistas, investigadores no geral – transformam as lacunas e silêncios de suas evidências em dúvidas. Além disso, avaliam sempre criticamente suas evidências, estando abertos a outras que podem, via de regra, até mesmo invalidá-las ou mudar avaliações ou conclusões dela. Porém, a visão conspiratória da realidade transforma o que há de obscuro nas provas em certezas quase que absolutas.

Voltando ao exemplo do suposto plano chinês de espalhar a pandemia. É comum, nas diversas mídias que circulam afirmando a existência da suposta guerra biológica de alusões a períodos de crescimento da China durante epidemias anteriores, fazendo-se relação causal com outro crescimento que o país pode experimentar dentre os efeitos da pandemia do coronavírus. Muitas vezes, essa afirmação circula editada em meio a informações reais.

São evidências e causalidades que, facilmente, podem ser apontadas como absurdas ou, no mínimo, problemáticas? Sim, mas quem tem visões conspiratórias da realidade já tem uma resposta quanto a isso: os "buracos" na ligação entre a "prova" apresentada e a teoria, que dariam sua sustentabilidade, somente não estão lá devido à perfeição dos agentes do plano conspiratório. "A mídia ocultou" ou "o governo chinês escondeu o restante" das provas e as infinitas variáveis disso caberão nesse tipo de leitura.

Daí, chegamos à terceira e, certamente, pior das características apontadas por Byford sobre o pensamento conspiratório: as teorias de conspiração são irrefutáveis. Apresentar evidências contrárias às teses conspiratórias de pessoas e grupos que acreditam nelas significa, em alguma medida, estar envolvido com o "grande plano". Disso decorre que a visão de mundo conspiratória é essencialmente maniqueísta.

De um lado, está a minoria que descobriu esse motor da história – o grupo que compartilha leituras conspiratórias da realidade – , uma multidão de pessoas manipuladas e, por fim, um inimigo, os poucos, múltiplos e vagamente identificáveis agentes da conspiração – que podem ser chineses, comunistas, "esquerdistas", judeus, maçons, etc. – que, a rigor, são inimigos.

Assim, também decorrem duas problemáticas sociais consideráveis da visão conspiratória de mundo. Uma, é sua atemporalidade. Dito de outro modo, teorias de conspiração diferentes podem ter seus personagens modificados e, assim, serem atualizadas.

Por exemplo, a teoria do coronavírus criada por um agente com ímpetos políticos não é exatamente uma novidade. Há diversas teorias que ligam a origem do HIV/AIDS à indústria farmacêutica, que a teria desenvolvido por propósitos comerciais ou eugenistas, ou que o ebola teria sido testes dos Estados Unidos de arma biológica na África.

Um dos paradigmas das teorias conspiratórias modernas, segundo Byford, surgiu da obra do contrarrevolucionário francês Augustin Barruel, que atribuía a Revolução Francesa a uma grade conspiração maçônica que buscava destruir a Igreja, monarquia e toda a ordem do Antigo Regime.

O autor, analisando historicamente as teorias conspiratórias surgidas entre o século XIX e XXI, observa que a junção dos elementos mostrados acima – a conspiração como motor da história; o agente oculto, vago, porém onipresente; a vagueza das provas como constituinte de certezas; a irrefutabilidade da teoria – são elementos que ligam a conspiração maçônica de Barruel a, por exemplo, os infames Protocolos dos Sábios de Sião, às sociedades defensoras da Terra plana e aos defensores da tese do globalismo e do marxismo cultural, por exemplo.

A outra problemática é que as teorias conspiratórias e seus sistemas de crenças sobejamente fechados produzem "bolhas", conferindo coesão de identidade a grupos sectários diversos, que não estão dispostos a debater seus pressupostos. As manifestações pró-Bolsonaro no último dia 15, somadas às crenças do presidente e do seu filho, dão o tom do problema.

Nos mesmos meios que circulam a teoria conspiratória do suposto plano chinês de derrubada da economia ocidental usando o coronavírus, há textos sobre "remédios" sem a mínima comprovação científica ou minimizando-se os riscos da doença.

É preciso entender e combater os conspiracionismos como uma questão de interesse público. Encarar tais fenômenos como mero "exotismo", ou como algo inofensivo, é fechar os olhos para um problema que já nos alcança em dimensões muito maiores, sobretudo numa crise de grandes proporções, em que a recusa da ciência e da informação pode custar vidas.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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