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Entendendo Bolsonaro

CNN Brasil: Emissora nega a autoridade do jornalismo na esfera pública

Entendendo Bolsonaro

30/03/2020 00h23

Na sexta-feira (27), a professora de direito Gabriela Prioli fez sua última aparição no programa "O Grande Debate", da CNN Brasil (Crédito: Reprodução/CNN Brasil)

[RESUMO] O afastamento da comentarista Gabriela Prioli joga luz sobre o fazer jornalístico da CNN Brasil. Refém da "democracia de audiência", a emissora é produto de um tempo que convida as instituições públicas, desde o Poder Executivo à imprensa livre, a, emulando as redes sociais, abrirem mão da sua autoridade e transformarem o pacto civilizatório "numa questão de opinião".

Rafael Burgos

Desde que estreou oficialmente no dia 15 de março, a CNN Brasil deu sinais indicativos do que, hoje, já se revela de modo mais concreto: o seu jornalismo parece não corresponder à necessária dose de coragem e compromisso público que o atual espírito do tempo exige dos veículos de comunicação.

Já naquele domingo em que foi ao ar pela primeira vez, o canal falhou num teste importante: a emissora teve a oportunidade de entrevistar Jair Bolsonaro, poucas horas após protestos que deram início à cruzada bolsonarista contra a saúde pública que, hoje, isola o presidente como único chefe de Estado que afronta as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Viu-se ali o prelúdio de um jornalismo acovardado, incapaz de confrontar uma autoridade que havia, com o ato, descumprido as determinações sanitárias, as recomendações do próprio governo e cometido, numa só leva, uma série de crimes de responsabilidade.

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As semanas seguintes serviram para evidenciar que a entrevista não foi um mero erro de percurso.

O afastamento de Gabriela Prioli, anunciado pela comentarista no último domingo (29), joga luz sobre o fazer jornalístico da emissora, representado na figura do seu mais repercutido programa nas redes sociais, "O Grande Debate", atração que chamou atenção ao colocar, diariamente, em condições de igualdade, uma professora de direito – Gabriela – e um agitador de plateia para discutir temas caros à saúde da população num momento crítico de uma pandemia.

A imparcialidade na era da 'democracia de audiência'

No ano de 1995, o cientista político Bernard Manin desenvolveu um conceito que revelou-se essencial para entender a atual dinâmica social e o arranjo institucional que em torno dela toma forma: a "democracia de audiência".

Com seu viés plebiscitário, a democracia de audiência produz um novo tipo de cidadão, aquele que, segundo a teórica política Nadia Urbinati, reúne um "aglomerado indistinto de indivíduos que compõe o público, um ator não coletivo que vive no espaço privado da domesticidade e, quando é agente sondado de opinião, atua como receptor ou espectador de um espetáculo encenado por técnicos da comunicação midiática e recitado por personagens políticos".

Na democracia de audiência, conforme frisa o professor de Relações Internacionais Carlos Gustavo Poggio, "O cidadão deixa de ser 'eleitor' para virar 'audiência'. Os partidos se enfraquecem e em seu lugar temos uma massa de cidadãos-audiência atomizados cujo único elo de organização são as redes sociais".

A emergência da esfera pública digital – a chamada ciberesfera – e a sua energia antissistema, que subverte a autoridade e iguala toda forma de conhecimento, produziu um enorme desafio para o jornalismo, uma vez que negar a legitimidade de opiniões sem compromisso com os fatos – um dever da imprensa livre – implica, ao mesmo tempo, sacrificar a sua popularidade junto ao cidadão-audiência e arriscar-se diante de uma força política – o bolsonarismo – que, em posse do Estado, representa uma ameaça cotidiana a qualquer veículo independente.

Nada ilustra melhor esse desafio, e a incapacidade da CNN para compreendê-lo, do que a última participação da comentarista Gabriela Prioli em "O Grande Debate".

O conteúdo do programa, que pode ser visto na íntegra aqui, revela como funciona o jornalismo que sucumbe à democracia de audiência: é aquele que nega a sua autoridade diante do espectador, de maneira que pouco importa o embasamento científico das opiniões ali apresentadas. Ou, como disse o apresentador Reinaldo Gottino à professora: "Mas, quando você passa pro telespectador esses exemplos, a pessoa em casa não está desenvolvendo uma opinião sobre o assunto sem ser técnica?"

"O Grande Debate" é a imagem de um tempo perigoso: aquele em que a dinâmica horizontal do mundo em rede já transcende o ecossistema que lhe deu origem e acaba por seduzir as instituições públicas, dentre elas a imprensa livre.

A sobrevivência dessas instituições, não é segredo dizer, dependerá da sua capacidade de resiliência. E, na CNN Brasil, temos o exemplo de um veículo incapaz de compreender este desafio.

Ao negar a autoridade do jornalismo na esfera pública, a emissora abre o caminho para aqueles que desejam transformar o pacto civilizatório numa mera "questão de opinião".

Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".

* ERRATA: Considerando que ainda não foi confirmado pela CNN Brasil o desligamento da comentarista Gabriela Prioli, este texto foi atualizado para se referir ao caso como "afastamento", e não "desligamento", como escrito na versão original. Pedimos desculpas pelo erro.

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