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Entendendo Bolsonaro

Covid-19: Como numa guerra, elite terá de encarar o imposto ou a morte

Entendendo Bolsonaro

30/03/2020 15h51

(Crédito: Poder360)

[RESUMO] A pandemia da Covid-19 gera efeitos econômicos que poderiam ser mitigados por meio de ajustes no Imposto de Renda dos mais ricos — incluindo a elite do funcionalismo público. Porém, a falta de um sentimento nacional capaz de superar as divisões de classe e de origem étnica e religiosa tornam tal abordagem praticamente impossível. Daí a pressão de empreendedores pobres e ricos para que o isolamento social seja breve, para não atrapalhar a economia. Embora seus membros tenham trazido o corornavírus para estas terras, a elite brasileira coloca-se acima dos dois fatos inevitáveis da vida, segundo Benjamin Franklin: a morte e a cobrança de impostos.

Vinícius Rodrigues Vieira

No domingo (29), ao violar as recomendações do próprio Ministério da Saúde e sair às ruas de cidades-satélite de Brasília, o presidente Jair Bolsonaro soltou a seguinte pérola: "Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia", disse o presidente, emendando, em seguida, que o governo vai estourar o teto de gastos para dar conta da crise, salientando que a conta vai ser paga "lá na frente".

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Inconscientemente, Bolsonaro ecoa a metáfora de que o combate à Covid-19 se assemelha a uma guerra. Tal argumento, aliás, já foi empregado por líderes à esquerda e à direita ao redor do mundo, inclusive o centrista Emmanuel Macron, presidente francês.

Isso porque, prosseguem as mesmas lideranças, a pandemia vai provocar à economia mundial danos como jamais vistos desde 1945, quando os Aliados derrotaram a Alemanha Nazista. Porém, cabe perguntar por que até agora ninguém — e não apenas Bolsonaro — decidiu estabelecer alíquotas de Imposto de Renda análogas àquelas praticadas durante a Segunda Guerra Mundial?

Afinal, diria Benjamin Franklin, inventor e um dos founding fathers americanos, "nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos". Para evitar perdas por Covid-19, nada mais lógico que aumentar o caixa do Estado com mais tributos.

A burguesia brasileira, que almeja ser aristocracia de sangue azul entre os caboclos, parece querer fugir de ambos, no entanto. Como quaisquer mortais, os mais ricos são vulneráveis ao vírus, tanto que, conforme reportagem da Folha, "importaram" a Covid-19 para o Brasil via três gatherings da nata social e econômica nacional — não aí incluída a comitiva de Bolsonaro que se encontrou com o presidente americano Donald Trump na Flórida.

Todavia, também tal e qual qualquer mortal, endinheirados anseiam pela normalização da vida — especificamente da economia. Por isso, demandam, junto com profissionais autônomos e informais pobres, a normalização das atividades econômicas o quanto antes.

Essa estranha coalizão existe tanto que, na saidinha de Bolsonaro, populares teriam gritado "tem que trabalhar, sim", "tem que trabalhar se não o país vai falir", informa o site Poder360.

Equacionar o efetivo combate ao coronavírus — que passa necessariamente pelo isolamento social e idealmente por testes em massa — e o sustento das pessoas não é tarefa fácil, mas a experiência de países hoje considerados desenvolvidos em guerras desde o século 19 nos dá alguma luz.

Por exemplo, nos EUA, as alíquotas e métodos de coleta do Imposto de Renda sempre mudaram drasticamente durante guerras, incluindo a Guerra Civil e as Duas Guerras Mundiais.

Alíquotas mais elevadas em tempos belicosos são um caminho para contornar o inevitável aumento da dívida dos Estados-nação durante conflitos internacionais, os quais levaram muitos países à bancarrota e à mudança sócio-política. A própria Revolução Francesa, que coroou na política as premissas do Iluminismo, teria sido desencadeada sobretudo pelo colapso das finanças do reino de Luís XVI.

No caso do Brasil, um sistema de alíquotas progressivas, que aumentaria a proporção do valor abocanhado pelo leão para além dos 27,5% máximos que todos os que ganham mais de R$ 4.664,68 pagam, seria plenamente justificável nas atuais circunstâncias. Em 1944, nos EUA, por exemplo, a alíquota máxima chegou a 94%  sim, você leu certo! — para ganhos anuais hoje equivalentes a US$ 2,5 milhões (ou R$ 12,5 milhões).

O leitor mais realista argumentaria que alíquotas elevadas não são politicamente viáveis, ainda mais no Brasil em que é notória a debilidade política  e, ao que tudo indica, mental, como até ex-aliados como Janaina Paschoal reconhecem — de Bolsonaro.

Ao que tudo indica, o chefe de Estado age como moleque e é contra o isolamento prolongado como estratégia para mitigar os efeitos da pandemia por pressão de empresários, sobretudo os do ramo comercial — que inclui não apenas os grandes varejistas, mas também os pequenos — , que ameaçam colocar 600 mil trabalhadores na rua se a quarentena não terminar até a metade de abril.

Mas o buraco é mais embaixo, como diz a sabedoria popular que populistas de direita — Bolsonaro inclusive — dizem representar. Os autônomos e informais pobres poderiam ser amparados pela redistribuição momentânea da riqueza dos mais ricos — empreendedores e assalariados que não tiverem seus proventos reduzidos, sobretudo a elite do funcionalismo público. Precisamos ir além de um eventual imposto sobre grandes fortunas, tal como debatido no Senado. Mas como?

O problema, portanto, não é meramente partidário, caro leitor branco de classe média. Falamos de uma questão de raiz identitária: o Brasil não é uma nação no sentido estrito. Não temos laços de solidariedade que se sobreponham à luta de classes e à cada vez mais saliente divisão racial e religiosa. E a culpa não é de Bolsonaro, que é mais sintoma do que causa do nosso esgarçamento como nação em construção.

De fato, por mais populista que seja, Trump se rendeu à realidade e aos custos políticos que o patriotismo impõe a qualquer ocupante da Casa Branca e anunciou no último domingo a prorrogação até o fim de abril das regras de isolamento social. Ninguém quer ver 2,2 milhões de mortos — nem mesmo um mandatário como Trump.

No Reino Unido, por exemplo, há negacionistas do Covid-19, mas a aristocracia e a burguesia não tiveram a pachorra de fazer carreatas exigindo o fim do isolamento social. O governo do populista de direita Boris Johnson vai, aliás, pagar 80% dos proventos dos trabalhadores que ficarem em casa por causa da crise.

Tendo vivido na terra da Rainha por quatro anos, posso dizer que nunca conheci um professor universitário que reclamasse de pagar mais de 40% do valor entre 50 e 150 mil libras por ano para a receita de sua Majestade.

Por exemplo, consideremos que um senior lecturer — geralmente professores com estabilidade e mais de dez anos de experiência depois do doutorado  numa universidade de Londres ganhe 60 mil libras por ano  conheço esses dados por já ter me candidatado a posições em instituições de ensino britânicas. Esse hipotético professor estaria entre os 3% mais ricos de seu país, segundo cálculos do Instituto para Estudos Fiscais.

Enquanto isso, no Brasil, um professor associado  equivalente a senior lecturer  de universidade federal pode ganhar até cerca de R$ 18 mil, estando, assim, entre o 1% mais rico em valores de 2016.

Para ilustrar essa realidade, permitam-me relatar que no último fim de semana participei de uma reunião profissional em que um professor aposentado de universidade pública, cujos vencimentos brutos estão na casa dos R$ 20 mil, se demonstrou preocupado com suas aplicações num grande banco de investimentos.

Embora esteja longe de ser um milionário, meu colega é, a seu modo, um rentista, tal como grandes investidores, muitos dos quais têm, sim, um pé no mundo produtivo, mas ganham horrores sobretudo em aplicações financeiras, inclusive a renda de aluguéis. Todos esses podem e devem ser taxados proporcionalmente a seus ganhos em situações de guerra como esta.

No Brasil, os Lucianos Hangs, Robertos Justus e Júnior Durskis — defensores da primazia do mercado sobre um suposto baixo número de mortos — são, na prática, "estrangeiros" num país de "Silvas", diria um dos meus avôs, Juca, que carregava esse que é o mais brasileiro dos sobrenomes.

Vovô estava errado: não é o sobrenome não ibérico que indica não pertencimento ao Brasil, mas — sem ecoar qualquer nacionalismo étnico-racial aos moldes dos populistas de direita — o sentimento de integrar uma casta supostamente intocável pelas leis dos homens e da natureza.

Tal pretensão explica por que alguns "privilegiados", como também diria vovô, se dão ao luxo de acharem estarem a salvo até mesmo da morte. Pode ser que um dia tenhamos a vida eterna na Terra, como alguns cientistas almejam. Ainda assim, não estaríamos a salvo dos impostos — exceto se estivermos entre os mais ricos de sociedades desiguais e pouco coesas como a brasileira. É a vida!

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV

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