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Entendendo Bolsonaro

Covid-19: "Subnotificação nos deixa no escuro", diz professora da USP

Entendendo Bolsonaro

07/04/2020 23h51

O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (Crédito: Pablo Jacob/Agência O Globo)

* Por: Cesar Calejon

À medida que avançam os casos de Covid-19 no Brasil, cresce a apreensão sobre o seus eventuais impactos nas regiões carentes de um País profundamente desigual.

Com o vírus chegando às favelas brasileiras, a ausência do federalismo cooperativo e a disseminação de informações falsas ou imprecisas impedem a formulação de políticas públicas assertivas para conter a pandemia de forma adequada.

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Considerando um sistema de saúde que estará sobrecarregado em algumas semanas, hoje, são três os maiores obstáculos à luta contra a Covid-19: (1) a falta de alinhamento entre a Presidência da República, o Ministério da Saúde, os governadores de vários estados e prefeitos municipais; (2) casos deliberados de subnotificação da doença, o que impossibilita a formulação de políticas públicas assertivas para endereçar o problema de forma realmente eficaz; e (3) notícias inverídicas que vêm sendo propositadamente disseminadas com o intuito de abreviar a quarentena.

Para Cristiane Kerches da Silva Leite, professora de Gestão de Políticas Públicas e da pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da USP, sem a cooperação dos diferentes Poderes da República, e na ausência de dados reais, é inviável elaborar políticas públicas adequadas para lidar com a pandemia.

"Os pressupostos básicos para a formulação de políticas públicas, no sentido de fazer planejamento e pensar em um horizonte, são os indicadores. Com dados subnotificados, que não permitem a avaliação do comportamento epidemiológico da doença, e sem a cooperação de todos os níveis do poder, fica praticamente impossível", garante a professora.

Segundo ela, o desenho institucional do Sistema Único de Saúde (SUS) pressupõe uma lógica de coordenação federativa que é afetada no seu âmago neste contexto de crise. "No Brasil, a crise da pandemia se combina com a crise política preexistente, que ganha novos contornos. Então temos dois planos de conflito que se cruzam, formando uma crise de coordenação federativa: o horizontal – dentro do governo federal – e o vertical – entre os níveis federativos – ", explica Kerches, que é doutora em Ciência Política pela USP.

Como fazem parte de basicamente todos os aspectos da vida, o dissenso e o conflito também atuam na constituição das políticas públicas.

Sobre as divergências entre a Presidência da República e o ministro da Saúde, diz ela: "É anômalo e muito grave política e socialmente. A divergência é profunda e não se dá somente no plano dos instrumentos de política, mas no plano do paradigma, da concepção do fenômeno social imbricado nesta política pública específica. Em meio a tudo isso, cada um tem um cálculo político: Bolsonaro jogando para uma minoria fanática e para os representantes do grande capital e o Mandetta jogando com a configuração de uma imagem para os futuros cenários políticos", acrescenta a acadêmica.

Para ela, o contraponto ao negacionismo bolsonarista tem sido a articulação do ministro da Saúde com atores federativos e do legislativo federal. "A PEC do Orçamento de Guerra reflete isso: a construção de respostas governamentais em alinhamento ao que tem ocorrido em vários países, no que tange à ampliação do gasto social", explica Kerches.

"Com relação ao eixo vertical", prossegue, "todos os atores também jogam politicamente, pensando nos cenários futuros, que se cruzam com a própria instabilidade gerada pelo isolamento de Bolsonaro. Ademais, as relações federativas ficam profundamente tensionadas, o que prejudica a gestão do SUS em termos de financiamento, articulação dos níveis de complexidade e monitoramento neste momento de pressão em toda a sua arquitetura".

Efetivamente, o federalismo brasileiro nunca foi cooperativo. A ideia de cooperação está nos artigos constitucionais, mas a dinâmica política, desde os anos 1980 e 1990, oscilou entre a centralização e a descentralização. "No que tange às políticas sociais, mecanismos de coordenação de políticas foram organizados por área, forjando o princípio de cooperação via mecanismos de indução. Veja as pesquisas da professora Marta Arretche, da USP", salienta Kerches.

Desta forma, principalmente na área da saúde, a articulação entre o governo federal e os governos estaduais e municipais, que se expressa em vários arranjos e de diferentes formas, fica profundamente prejudicada, do ponto de vista institucional e simbólico.

"As condições de trabalho dos profissionais de saúde que estão na ponta, por exemplo, deveriam ser o foco de todas as ações – da Presidência da República às coordenações de saúde municipais – no eixo federativo. Há necessidade de boas condições objetivas de trabalho (materiais, instrumentos, locais estruturados etc.), assim como de apoio social e político mais amplo aos profissionais. É preciso lembrar que, historicamente, o SUS foi vilipendiado por vários setores. Agora, o sistema que sempre foi 'pintado' como ineficiente e 'drenador de recursos' é o nosso bastião de sobrevivência coletiva", diz a professora.

Outro ponto que ela ressalta é o arranjo público-privado na oferta dos serviços de saúde, que está presente em vários municípios e estados brasileiros desde os anos 1990  com a valorização da Reforma Gerencial, no governo FHC.

"Isso pode agravar o problema de coordenação da política. Formou-se, nas últimas décadas, um sistema estruturado em arranjos fragmentados, descoordenados e desconectados, que gera um ambiente institucional no qual a dimensão pública fica refém das lógicas privadas das organizações. As métricas e objetivos das OSS  como a Cejum, por exemplo  , determinadas nos contratos de gestão, tendem a colidir com a lógica pública coordenada. Por exemplo, sistema de metas de atendimento, ausência de controle social e opacidade na construção de informações podem gerar um grande problema de desconexão entre as estruturas implementadoras e a lógica da política de saúde formulada pelos gestores, que já é bastante tumultuada, conforme comentado", avalia Kerches.

Caso as subnotificações estejam passando por decisões no âmbito desses arranjos, trata-se de um gravíssimo problema, pois não se formula, implementa, monitora e avalia-se políticas públicas sem informações cientificamente confiáveis, conforme supramencionado por ela.

"É fundamental construir políticas públicas com indicadores sociais baseados em dados atualizados, consistentes e comprovados. Desta forma, na medida em que a notificação de casos é uma etapa importante na construção de indicadores que podem ser utilizados para o monitoramento do atual quadro da saúde, a subnotificação nos deixa no escuro, na pior situação possível", alerta a doutora.

Ainda segundo ela, a emenda constitucional do teto  do governo Temer  fragilizou o SUS em vários níveis. "Desde a contratação de pessoal, reposição de material, planejamento de ampliação de postos de saúde e hospitais. Afetou tudo. Foi um impacto linear em insumos, recursos humanos, infraestrutura, em tudo. A própria cobertura vacinal é um indicador que demonstra isso durante os últimos anos", ressalta.

Todos estes dados somados à falta de alinhamento da gestão bolsonarista com o restante do mundo e a sua lógica de propagação das notícias falsas vêm desidratando, politicamente, o presidente da República durante a crise da Covid-19. Recente pesquisa do Datafolha demonstrou que, segundo 51% dos brasileiros entrevistados, Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate à pandemia.

"O negacionismo genocida do bolsonarismo precisa ser parado com urgência. Youtube e Twitter 'derrubaram' recentemente algumas postagens proferidas por atores da rede bolsonarista, mas é preciso muito mais do que ações tópicas (…) Há milhares de pessoas que ainda se pautam pelas postagens da rede bolsonarista para organizar a vida e decidir pela adesão ao isolamento, tanto individualmente como na gestão de relações de trabalho. Esta crise é muito séria para ficarmos reféns de um grupo político que já demonstrou total inépcia e que coloca seus cálculos políticos usurpadores acima da dimensão humana e pública", adverte Kerches.

Em termos de políticas de governo para enfrentar a crise, neste momento, a acadêmica acredita na criação de "condições para que os mais pobres sejam protegidos. De imediato, (são necessários) o urgente pagamento da renda básica, a manutenção das demais transferências, como o BPC, e a proposição de outros programas que auxiliem os mais necessitados no plano local.

Conclui a professora: "É falaciosa a ideia de que existe uma contraposição entre saúde e economia. O papel mais ativo do Estado é fundamental para fomentar e estruturar os dois eixos. O que se fez até agora, sobretudo no Estado de São Paulo, mas também no restante do País, ainda é muito tímido".

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).

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