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Entendendo Bolsonaro

Covid-19: País agoniza sob falso debate entre ciência e obscurantismo

Entendendo Bolsonaro

10/04/2020 12h27

Bolsonaro e Osmar Terra: dois líderes e uma escolha política, a de, em meio à pandemia, dar vazão a um falso debate entre ciência e obscurantismo (Crédito: Presidência da República)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Como não poderia ser diferente, ainda que não tenha resultado em demissão, o embate político em torno do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), produziu desdobramentos importantes na gestão da pandemia de Covid-19 no Brasil, assumindo contornos de uma crise.

Na última sexta (9), em conversa ocorrida entre o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni (DEM), e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), divulgada em matéria da CNN Brasil, os dois aparecem conjecturando sobre o número de mortos pela pandemia do Brasil, além de questionarem as medidas de isolamento social, passando, na maior parte do tempo, por falar explicitamente da demissão de Mandetta. Tal vazamento motivou uma reunião, no mesmo dia, entre o ministro da Saúde e o presidente.

O teor da conversa, em trechos como o que Onyx diz que Mandetta "não tem compromisso com nada que o Bolsonaro está fazendo", e em seguida afirma haver um "xadrez" na saída do ministro que, depois, se aproximaria do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), é um exemplo saliente da razão de ser desta crise: uma total politização dos rumos tomados para enfrentar a pandemia.

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O que acontece, em síntese, é que há duas narrativas predominantes sobre o enfrentamento da crise da pandemia do coronavírus: de um lado, as recomendações da OMS, a defesa do isolamento social e cautela na adoção de medicamentos, materializada na figura de Mandetta, governadores, entre outras figuras; de outro, a rejeição da ciência e o apego a soluções simplórias, a dicotomia entre salvar vidas ou a economia e a insistência numa suposta histeria difundida pela mídia, materializada por Bolsonaro e Osmar Terra, dentre outros apoiadores.

E esse último lado é que pode trazer consequências mais graves na já gravíssima crise da Covid-19. Isso porque sua pedra angular é o negacionismo para encarar o problema. Além disso, a própria politização de um debate essencialmente científico, polarizando posições num xadrez político, como bem mencionou Onyx Lorenzoni, também aponta para outros problemas na condução do debate político, sobretudo num momento de uma tão intensa quanto imprevisível crise, causada por uma pandemia.

O negacionismo é uma marca do discurso bolsonarista, constituindo um de seus aspectos cruciais. Entendamos aqui o negacionismo, no seu significado científico, como a rejeição de dados metodicamente analisados e organizados segundo protocolos e metodologias científicas, na medida em que eles não endossam determinadas narrativas, ou ainda sua simples distorção para o mesmo fim.

Assim, é possível elencar muitos exemplos dele nas ações dos ministros do atual governo. Ricardo Salles, diante do grande aumento de queimadas da Amazônia, atacou os dados do Inpe que apontavam para tal problema, gerando as circunstâncias para a demissão de Ricardo Galvão, reconhecidamente gabaritado para o cargo.

O próprio Osmar Terra já rejeitou os resultados de pesquisa conduzida pela Fiocruz porque não endossavam o pressuposto de haver uma "epidemia de drogas" no Brasil, que justificasse políticas defendidas por ele como o acirramento de uma guerra às drogas ou internações compulsórias.

Poderíamos aqui seguir com diversos outros exemplos, como a campanha conduzida de defesa da abstinência sexual, do ministério de Damares Alves, ou a insistência de Paulo Guedes na recuperação econômica do Brasil devido a seu reformismo neoliberal, ainda que todos os dados reforcem o oposto.

Importa aqui ver que, em comum, essas posturas evidenciam um ímpeto de desafiar realidades demonstradas por especialistas das mais diversas áreas.

Não existe nada de incorreto em questionar dados fornecidos por especialistas. Inclusive, é saudável haver certo ceticismo quanto a eles e, sobretudo, lê-los criticamente. Dentro de qualquer debate científico, dados são questionados apresentando-se outros, construídos e organizados segundo protocolos específicos e validados por outros cientistas. Mas aí é que reside o problema.

O bolsonarismo questiona dados de uma forma distinta, e nada saudável ao debate. Ao invés de mostrar fatos e evidências contrários ao que se rejeita, as figuras exemplificadas acima produzem repetidas rejeições e distorções de dados, apresentados ao público como verdades possíveis.

Muitas vezes, essas rejeições são maquiadas de maneira a se parecerem com ciência verdadeira, dando-se impressão de haver ali alguma forma de discussão válida, enquanto há somente um estrangulamento de informações para endossar uma narrativa.

Observa-se posturas semelhantes no curso das ações relacionadas à pandemia de Covid-19. A OMS tem cada vez mais mostrado que somente medidas de isolamento social podem atenuar a disseminação do vírus. Por sua vez, os modelos que mostram alternativas não drásticas nesse sentido, aqui remetendo novamente aos estudos do Imperial College, apontam para cenários bem mais sombrios.

Mas, se na comunidade científica se forma um consenso em torno do isolamento social amplo, o que se tem visto em figuras-chave do bolsonarismo é a rejeição mais ou menos radical do consenso científico e sua politização.

Isso aparece numa negação dos fatos científicos com relativa aparência de rigor analítico, como fez Osmar Terra, ao distorcer gráficos de maneira a parecer que o isolamento social era comprovadamente ineficaz.

Mesmo ele tendo sido rebatido em seu post por Gabriela Prioli, que demonstrou sua falsificação, o problema já está posto no fato de essa falsificação estar respaldando posições no debate público.

O mesmo ex-ministro do atual governo chegou a publicar artigo na Folha em que elogia a "coragem" de Jair Bolsonaro em questionar a ciência e adotar postura, compartilhada com apenas outros dois outros países no mundo, contrária ao isolamento.

Osmar Terra vai além, acusando cientistas de "catastrofismo", entre outras coisas. Desse modo, ao ocupar esses espaços questionando a ciência com base em falsificações e negacionismo, materializa bem o problema dessa forma de politização do debate.

Outro exemplo está na falsa dicotomia, reproduzida pelo próprio presidente, entre salvar pessoas da Covid-19 ou salvar a economia. Há, a princípio, um absurdo do ponto de vista ético em se colocar a escolha entre a vida de pessoas e a recuperação econômica.

Fora isso, há uma enormidade de estudos mostrando que na maior pandemia documentada de todos os tempos, a da chamada "gripe espanhola" de 1918 e 1919, as cidades que adotaram medidas mais duras de contenção da doença se recuperaram mais rapidamente no campo econômico.

Nos exemplos postos acima, o negacionismo se fez elemento-chave para a agenda adotada por um grupo político dentro do atual governo. A fim de atender pressões de setores empresariais que raciocinam apenas de maneira imediatista e grupos como as grandes igrejas neopentecostais, além de antagonizar com governadores dos estados da federação, o bolsonarismo se volta a uma rejeição daquilo que prescreve a ciência, estrangulando seus dados para que caibam em suas narrativas.

O resultado mais temerário é o de politizar um curso de ações que deveria ser pautado pelo conhecimento científico. Seguir determinações da OMS, comunidade médica e científica ou rejeitá-la passa a ser disputa de pontos de vista e narrativas políticas anti e pró-governo. Isso se reflete no curso das ações políticas e terá consequências no desenvolvimento da pandemia no Brasil, ao que tudo indica.

Isso se vê na diminuição do isolamento social, apesar das perspectivas de que isso aumentará as infecções pelo coronavírus. Nas redes sociais, há campanhas feitas por militantes nas quais se vê que muitas pessoas associam a desobediência ao isolamento social à fidelidade tida à figura de Jair Bolsonaro.

Além disso, mesmo sem a demissão de Mandetta ou sua substituição por Osmar Terra, o discurso do Ministério da Saúde mudou para recomendar a redução do isolamento já a partir de segunda (13) a depender de estados ou cidades terem além de 50% de sua capacidade de leitos vagos, o que mostra outras dimensões de desdobramentos desse processo.

No momento, o que se vê são duas narrativas, uma materializada na figura de Osmar Terra e outra em Mandetta, com apropriações antagônicas do negacionismo científico: uma o abraça como agenda, e a outra o rejeita, num processo de idas e vindas, sujeita a pressões próprias de um jogo político. Ainda que se reconheça a postura do governo como muito mais temerária, o processo em si da verdade científica estar sujeita a esse xadrez político assume aspectos bem perigosos diante de uma pandemia dessas dimensões.

Desde os protestos em maio do ano passado, em que muitas pessoas foram às ruas protestando contra os cortes do Ministério da Educação feitos nas universidades federais, um cartaz tem sido lugar comum, dizendo que "todo filme de catástrofes começa com políticos ignorando o que os cientistas dizem". Por mais anedótica que a frase seja, ela deve nos fazer refletir sobre o problema discutido no texto.

Ao falar de ciência, estamos falando de construção do conhecimento segundo regras bem específicas, que não podem prescindir de evidências, provas, especializações em áreas diversas do conhecimento e validação daquilo que é produzido por pares. Não se consideram as opiniões, exceto se elas se assentarem sobre esses elementos mencionados.

Quando se tem um lado para o qual a ciência é meramente acessória para endossar narrativas ou rejeitada simplesmente, não há debate científico, só confronto entre conhecimento e obscurantismo, um falso debate sob o qual o País agoniza.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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