Sob Bolsonaro, militares viram senhores da República
* Vinícius Rodrigues Vieira
Antes da eleição de 2018, acreditava-se que militares seriam os moderadores dos arroubos incompetentes, antidemocráticos e psicóticos de Jair Bolsonaro.
Muitos devem ter digitado 17 na urna eletrônica acreditando — ou fingindo acreditar — nesse conto da carochinha. Afinal, o capitão reformado Bolsonaro saiu da ativa com a ficha suja, suspeito de planejar atentados contra instalações militares no Rio de Janeiro em meados dos anos 1980. Como diria Ernesto Geisel, talvez o mais influentes dos generais à frente da ditadura, tratava-se de um mau militar
Hoje, mais que moderadores, militares no governo flertam com o infame papel de traidores da pátria e golpistas ao entenderem que o mau militar de outrora — hoje péssimo presidente — encontra-se acuado pelos poderes Legislativo e Judiciário e chefes dos executivos estaduais que, na linha de frente do combate à Covid-19, nada mais fazem que cumprir suas obrigações constitucionais ao minimizar os efeitos da pandemia sem a coordenação de Brasília.
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A adesão tácita dos militares ao golpismo cada vez mais explícito de Bolsonaro ficará explícita caso fiquem quietos diante de um novo avanço do presidente contra as instituições democráticas.
No domingo (3), após saudar, do alto da rampa do Palácio do Planalto, manifestantes contra o Judiciário e o Legislativo, o presidente afirmou que "não vai mais admitir interferências", numa clara referência à decisão liminar de Alexandres de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), de suspender a nomeação de Alexandre Ramagem — próximo ao clã Bolsonaro — para dirigir a Polícia Federal.
Vocês sabem que o povo está conosco, as Forças Armadas — ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade — também estão ao nosso lado" (…) daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço. E ela tem dupla-mão. Não é de uma mão de um lado só não.
Jair Bolsonaro
Urge que os militares descolem-se dessa escalada autoritária do presidente, acentuada após a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Causa ainda estranheza que, na véspera dos atos de domingo, Bolsonaro tenha se reunido fora da agenda, no Alvorada, com chefes das três Forças Armadas e ministros militares. Segundo a Folha, há relatos dissonantes do encontro. Para uma dessas versões, haveria fardados a encorajar o novo arroubo bolsonarista contra o STF, o que explicaria o vale-tudo prometido pelo presidente aos manifestantes no domingo.
Bolsonaro pode até chamar Moro de Judas por traí-lo ao expor suas tentativas de interferir politicamente na Polícia Federal. A continuar assim, porém, os verdadeiros Judas serão os militares. Quem trai o presidente não é necessariamente um Judas, mas quem atenta contra a Constituição, sim. Como o ex-ministro lembrou, há lealdades maiores que as pessoais.
Ou, para tornar mais evidente o flerte com a tentação autoritária, os generais-governantes de hoje arriscam-se a entrar para a história ao lado de Domingos Fernandes Calabar, que se aliou aos holandeses na guerra contra portugueses, negros e indígenas no século 17 — conflito que é o mito fundador do Exército Brasileiro, celebrado todo 19 de abril.
Hoje não combatemos invasores estrangeiros, mas um presidente e seus apoiadores prenhes de arroubos genocidas e liberticidas ao insistirem em negar a gravidade da epidemia e apoiar o fechamento dos poderes Legislativo e Judiciário.
O grande atestado de fracasso da Nova República não é a eleição de um golpista escancarado, mas o fato de — aparentemente — dependermos dos sucessores dos "generais-golpistas" de antes para que não se tenha no Brasil um novo regime de exceção. A necessidade de afirmar sempre que estão comprometidos com a democracia põe em dúvida este mesmo comprometimento.
Do mesmo modo, virou lugar comum para Bolsonaro afirmar que é o presidente: faz isso porque já não o é de fato. Hoje os militares são, pelo menos, os senhores da República. Tornar-se-ão traidores? A mesóclise nos remete ao presidente Michel Temer, que, devido a sua falta de legitimidade perante parcelas expressivas da opinião pública, acabou por ampliar a presença militar no executivo.
Fez-se, assim, a cama perfeita para que uma figura como Bolsonaro deite e role entre os lençóis do golpismo, acompanhado por aqueles que acham que — coitado do presidente — está acuado pelos demais poderes e governadores.
Na prática, portanto, os militares no governo podem até rejeitar o bolsonarismo — que aposta no caos em vez da ordem associada à tradição positivista de nossas Forças Armadas — , mas cerram fileiras em torno do presidente, que, logicamente, passa a sentir-se a vontade para apoiar atos como os de 3 de maio e 19 de abril, quando, absurdamente, mobilizou golpistas em frente ao Comando do Exército em Brasília.
Como uma criança birrenta, basta que depois de um castigozinho — encarnado num ato de contrição bastante discreto, como a fala de 20 de abril — Bolsonaro faça, em tese, as pazes com seus tutores. Estes, porém, não esclarecem onde se encontram de fato: ao lado da Constituição que assegura a independência entre poderes ou do pretenso comandante-em-chefe que nada lidera senão seu círculo de poder mais restrito?
Se há relatos de desconforto entre as altas patentes — profissionais que iniciaram sua trajetória nas Forças Armadas durante a decadência da ditadura militar — , os estratos inferiores aparentam ser bolsonarismo em estado puro.
Ainda que com atritos — sobretudo após a aprovação de uma reforma da Previdência para a categoria — , a aliança entre o presidente e a base militar é real, como sugere o apoio bolsonarista à greve de PMs no Ceará.
E é nessa base que estão o cabo e o soldado que, na frase infame de Eduardo Bolsonaro, bastariam para fechar o STF. As baixas patentes cumprirão tal vaticínio ao lado de policiais militares? Pergunto isso porque eles, mais que os participantes das carreatas da morte, talvez formem a base da grande milícia bolsonarista que emerge impunemente diante dos nossos olhos diante de atitudes como a aposentadoria compulsória de um policial militar do Paraná que criticou o presidente.
Façamos cumprir a Constituição e, com base nela, coloquemos Bolsonaro, cabos e soldados em seu devido lugar: cumpridores da Carta Magna e, portanto, da independência entre poderes e da soberania popular nos limites da lei igualmente soberana.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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