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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaristas preparam verniz constitucional do golpe

Entendendo Bolsonaro

29/05/2020 13h23

O jurista Ives Gandra é, hoje, instrumento do bolsonarismo para conferir legitimidade intelectual e moral ao golpe que se planeja. (Crédito: Reprodução)

[RESUMO] Interpretação esdrúxula do artigo 142 da Constituição, que indica a possibilidade de convocação das Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem, pavimenta caminho para um golpe de Estado. Cabe aos generais que ocupam cargos no governo, em especial o vice-presidente, rechaçar tal interpretação, caso contrário recairão sobre seus ombros legítimas suspeitas de golpismo a favor de Bolsonaro.

Vinícius Rodrigues Vieira

Quanto mais alguém nega algo é porque aí tem, diria a sabedoria popular nas mais diversas formas — a mais conhecida talvez seja a expressão "onde há fumaça, há fogo". Em psicanálise, fala-se de negação como expressão que esconde seu oposto. Portanto, devemos confiar nos generais Hamilton Mourão e Augusto Heleno quando rechaçam qualquer possibilidade de golpe no Brasil?

Tudo depende daquilo que entendemos por golpe. Bolsonaristas — incluindo aí o líder do maior movimento de extrema-direita da história do País — ventilam há tempos o possível uso do artigo 142 da Constituição. Leia-o você mesmo abaixo, ipsis litteris:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso).

Cabe perguntarmos aos generais Mourão e Heleno qual é seu entendimento do artigo 142. Eles prestariam um serviço à nação se fossem explícitos sobre o assunto. Da parte do presidente Jair Bolsonaro, a interpretação é óbvia: 142 é a senha que lhe permite evocar a fala dúbia de semanas atrás: "a Constituição sou eu". Seu filho zero três, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (SP), já foi claro: a questão não é se haverá uma ruptura, mas quando ela vai ocorrer.

Vamos aos fatos: o trecho acima destacado da Constituição motivou na quinta-feira (28) uma live, divulgada pelo presidente em suas redes sociais, em que o autointitulado jornalista investigativo Oswaldo Eustáquio, em seu canal no YouTube, entrevistou o jurista Ives Gandra Martins.

Em suma, Ives Gandra argumenta que o trecho destacado permite que qualquer um dos poderes constitucionais — isto é, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário — pode convocar as Forças Armadas para manter a lei e a ordem. O jurista — conhecido por suas ligações com o grupo ultraconservador católico Opus Dei — fala em "aplicação pontual" do artigo, com o uso hipotético de militares para que um poder se recuse a cumprir determinações entendidas como inconstitucionais de outro poder. O debate jurídico sobre a questão está bem coberto em matéria do Congresso em Foco.

Por essa linha de interpretação do artigo 142, Bolsonaro poderia descumprir, com o apoio de militares, decisões judiciais como aquela que determinou busca e apreensão de provas relacionadas a suspeitos de participar do chamado "gabinete do ódio" que difunde fake news.

O presidente ficou claramente possesso com as determinações do ministro Alexandre de Morais, do Supremo Tribunal Federal (STF), que atingiram em cheio blogueiros bolsonaristas. O "acabou, p…." presidencial ganha verniz constitucional na interpretação de Ives Gandra.

Portanto, se empregarmos o raciocínio acima, podemos ver no futuro breve, em meio a milhares de cadáveres de vítimas da Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro convocando o alto comando militar do país para prender um ministros do STF que decidisse algo que, na visão do Planalto, invadisse a competência do chefe do Executivo. Tal prisão supostamente restauraria a garantia dos poderes constitucionais e, portanto, da lei e da ordem comprometidas pelo ativismo judiciário do tribunal.

Não precisa ser jurista para imaginar o que viria depois — uma "trozoba", para citar um dos vocábulos utilizados por Bolsonaro de maneira inusitada na reunião ministerial de 22 de abril. Como lidar com tal hipotética prisão?Poderiam os chefes do Judiciário e do Legislativo reagirem solicitando o mesmo contra o chefe do Executivo, embora este seja o comandante-em-chefe das Forças Armadas?

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Talvez tenha sido por conta desse cenário que Bolsonaro falou em sua live semanal da última quinta-feira que talvez abra uma terceira vaga no STF durante seu mandato, além daquelas vacâncias previstas em virtude das aposentadorias compulsórias de Celso de Mello neste ano e de Marco Aurélio Mello em 2021.

A "trozoba" seria um golpe com verniz constitucional — como, aliás, os golpes costumam ser ainda que sejam feitos à base de canhões e espadas. Basta lembrar que, em 1964, o STF — hoje principal alvo das hostes bolsonaristas — deu legitimidade à deposição de João Goulart.

Ademais, cabe lembrar que os apoiadores do presidente falam desde antes da campanha presidencial de 2018 em "intervenção militar constitucional", como ficou claro na greve dos caminhoneiros daquele ano.

Eu mesmo testemunhei diversos protestos na Paulista desde 2016 com faixas reivindicando tal possibilidade — em alguns deles, havia um boneco inflável de Mourão, apresentado — tudo indica — pela primeira vez em 2015, em Brasília, quando de sua exoneração do Comando Militar Sul após criticar a então presidente Dilma Rousseff.

Quando clubes de oficiais emitem notas de apoio ao alerta de Heleno para a emergência de consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional após Celso de Mello encaminhar pedido de partidos de oposição para apreender o celular de Bolsonaro, todo alerta é pouco.

Já vimos esse filme antes: militares na política são sombra da "trozoba", para usar a linguagem bolsonarista. E onde há fumaça, há fogo que, embora pequeno, pode virar um grande incêndio para converter em cinzas o nosso já combalido edifício constitucional.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV

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