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Entendendo Bolsonaro

Inquérito do STF é combustível para fantasia antissistema

Entendendo Bolsonaro

29/05/2020 07h46

Jair Bolsonaro e o deputado federal Arthur Lira (PP-AL): enquanto se alia ao Centrão para se salvar do impeachment, o bolsonarismo veste a fantasia antissistema para atiçar fanáticos. (Crédito: Reprodução)

* Murilo Cleto

Na quarta-feira (27), a Polícia Federal (PF) bateu à porta de algumas das mais conhecidas vozes do bolsonarismo na internet. Alexandre de Moraes, ministro responsável pelo inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal, determinou buscas em residências de blogueiros, empresários e até deputados alinhados ao governo.

Bolsonaro tinha acabado de comemorar uma operação da PF que, na terça-feira (26), atingiu o governador carioca Wilson Witzel, ex-aliado e atual desafeto do presidente. Dessa vez, no entanto, só se ouviram protestos do Palácio do Planalto, além de, claro, solidariedade irrestrita aos investigados.

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Mas o apoio não parou por aí. O ministro da Justiça André Mendonça, que no ano passado, enquanto advogado-geral da União, havia emitido parecer favorável ao inquérito quando ele atingia os sites Crusoé e O Antagonista – a despeito da flagrante violação do sistema processual acusatório –, se adiantou para apresentar um habeas corpus preventivo em favor dos investigados, com destaque estratégico para o ministro da Educação Abraham Weintraub.

Além do governo, também esteve ao lado dos mais novos alvos da PF o Procurador-Geral da República – outro que não viu problema no inquérito ano passado e agora pede seu arquivamento. Em que pesem as inúmeras controvérsias da peça, são realmente robustos os indícios de uma vasta rede de desinformação que não apenas difama ministros do Supremo, mas atenta contra as instituições, colabora para um grave processo de deterioração institucional no Brasil e que agora também joga contra a saúde pública ao mentir sobre a pandemia do novo coronavírus. E, assim como diante de outros assuntos sensíveis à presidência, Augusto Aras tem sido no mínimo conivente.

Seja como for, a base bolsonarista foi à loucura, num misto de indignação e catarse pela operação. Para muitos, foi a oportunidade perfeita tanto para destacar sua importância junto aos demais do grupo quanto para sustentar uma retórica antissistema cada vez mais vazia. Bolsonaro foi eleito e segue na presidência sobretudo graças a ela, por incrível que pareça.

Incrível porque, como tanto têm insistido intelectuais brasileiros como Tatiana Roque e Rodrigo Nunes, seria difícil conceber algo mais ultrassistêmico do que a nova extrema-direita brasileira. A agenda econômica talvez seja o objeto mais aparente desse feixe, mas as próprias relações políticas do bolsonarismo revelam o quanto não há nada fora da estética e da retórica que subsidie essa alegação governista.

E elas também incluem o Supremo. A Corte tem sido generosa, por exemplo, com os pedidos de Flávio Bolsonaro para travar as investigações sobre o caso Queiroz. Antes da eleição, o senador e o pai eram contra o foro privilegiado por considerar que o dispositivo servia de blindagem para os agentes do sistema. Mas não é só.

Nas últimas semanas, Bolsonaro tem intensificado a relação com o Centrão. R$ 75 bilhões da União já estavam, até o fim da semana passada, sob o controle do bloco de partidos mais fisiológicos do Congresso brasileiro, incluindo os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Seu comandante inclusive é homem de confiança de Valdemar Costa Neto, condenado no Mensalão que, no mesmo dia da operação que atingiu os ativistas pró-governo, virou réu mais uma vez por corrupção passiva, peculato e fraude à licitação.

Hoje um dos maiores entusiastas do governo é outro nome conhecido por essas bandas: Roberto Jefferson, que é tão de verdade em seu anticomunismo patriótico que plagiou texto de Olavo de Carvalho quando a direita brasileira ainda tinha outras prioridades.

Defendidos pelo presidente, o ministro da Justiça, o Procurador-Geral da República e o Centrão, os investigados passaram o dia protestando contra o sistema. Alguns transmitiram a chegada dos policiais ao vivo, subindo o tom das ofensas. Um deles tentou até atiçar os cachorros. Outra, que organiza um grupo paramilitar em Brasília com a anuência das autoridades, disse que infernizaria a vida de Alexandre de Moraes até ele "pedir para sair". Foi esse o presente do ministro para o bolsonarismo pirotécnico.

É tudo parte do show. Muitos não escondem a vontade de ir para a cadeia. Soa contraintuitivo, mas é a chance de virarem mártires nessa tarefa inglória de tentar convencer o mundo de que estar ao lado de Bolsonaro é algo como integrar uma cruzada medieval.

Como previsto, o discurso pró-golpe inflamou. Eduardo Bolsonaro já não fala mais em "quando", mas "se". Embora seja muito provavelmente o sonho de todo bolsonarista, a ruptura institucional faz pouco sentido a essa altura. Ao bolsonarismo interessa a tensão institucional porque com ela vem a degradação. E porque, a cada ameaça, também vêm os recuos e os panos quentes – a boiada que passa, nos termos de Ricardo Salles.

Em que lugar do mundo seria admissível que deputados governistas antecipassem uma operação da Polícia Federal logo depois de o presidente admitir que queria interferir no órgão e emplacar no seu comando, depois de um imbróglio jurídico, um amigo do amigo? E o ministério da Justiça atuando como escritório de advocacia de quem diz que a masturbação mata neurônios?

É esse o golpe. É parecer admissível estar sem um ministro titular da Saúde no meio da maior pandemia do século porque os nomes cogitados para a vaga são de negacionistas que beiram o lunatismo. É falar em "quando" enquanto na verdade já está sendo. É ter qualquer coisa para se agarrar nessa fantasia antissistema e justificar a mais completa inaptidão administrativa.

Hoje foi o Alexandre de Moraes. Amanhã deve ser algum estudo do Imperial College. Depois, uma matéria da Folha. E assim vai. Para sustentar essa retórica vazia enquanto carcome as instituições brasileiras, o bolsonarismo vai se agarrar ao que estiver pela frente.

* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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