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Entendendo Bolsonaro

Pandemia expôs liberalismo da morte de Bolsonaro, diz historiador

Entendendo Bolsonaro

13/07/2020 11h00

Normalizar uma doença que já vitimou mais de 70 mil brasileiros, eis uma prática do liberalismo da morte (Crédito: Helvio Romero/ Estadão)

[RESUMO] Para o historiador Bruno Frederico Müller, na pandemia, o bolsonarismo venceu a queda de braço com os setores mais responsáveis da sociedade, o que significou normalizar a covid-19 como uma doença com a qual "devemos conviver". Para ele, Bolsonaro guia-se por um liberalismo da morte, uma forma radical de darwinismo social que caminha junto com o fascismo bolsonarista.

* Bruno Frederico Müller

Em 24 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro fez seu famoso discurso comparando a covid-19 a uma "gripezinha" e instando à reabertura do comércio e das escolas, justo no momento em que governadores e prefeitos iniciavam as medidas de isolamento social para conter a epidemia do coronavírus no Brasil.

Não faltaram aqueles a vaticinar que aquela era a morte política do presidente, isolado enquanto governadores, prefeitos e a população se aliavam no combate da crise sanitária – tanto que as conversas sobre impeachment foram abafadas. Era melhor deixar o presidente "sangrar", e priorizar a luta contra o vírus, disseram políticos e especialistas.

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Foi um erro de avaliação grosseiro. Promovendo aglomerações, fazendo seguidas declarações na TV, em entrevistas, em eventos públicos, chamando os confinados de covardes, ou com atitudes performáticas, como a ida à casa do presidente do STF para reforçar seu desejo de reabertura, Bolsonaro encorajou seus seguidores nas ruas e em carreatas, e empresários nos palácios, minando o esforço do isolamento social e exercendo forte pressão pela "flexibilização".

O governador de São Paulo João Doria, ainda hoje apresentado no discurso da imprensa como grande adversário de Bolsonaro – na disputa eleitoral, talvez, mas não mais na crise sanitária – cedeu, assim como muitos outros governadores e prefeitos, alguns deles entusiasticamente.

O resultado, já vemos: o número de infectados segue crescendo, o de mortos está aparentemente estável, mas em patamar alto, sem indícios de queda. Normalizou-se a covid-19. Como a pobreza, a falta de saneamento básico e a violência urbana, a doença virou uma causa de mortes com a qual devemos conviver e administrar, e não uma questão de vidas a serem salvas. Bolsonaro ganhou a queda de braço, e agora deveria estar claro que combater a ideologia assassina do presidente era parte integral e prioritária do combate ao coronavírus.

Vamos falar mais dessa ideologia assassina. Eu a chamo de liberalismo da morte, e vem sendo pouco explorada por aqueles que cobrem os descalabros cometidos por governadores e prefeitos através de uma flexibilização precoce que mina qualquer esforço real de reduzir o número de contágios e mortes. Basicamente, os governantes transferiram para a população quase toda responsabilidade pela prevenção à covid-19.

Claro que não o dizem com essas palavras: recomendam o uso de máscaras e repetem como mantra "fiquem em casa". Mas a mensagem é contraditória: se é para ficar em casa, por que abrir bares, restaurantes, shoppings, estádios e outros lugares de aglomeração que não prestam serviços essenciais?

Liberais e psicólogos entendem bem disso: se você cria incentivos para os seres humanos se comportarem de determinada maneira – sair de casa, no caso – elas responderão aos incentivos e não aos conselhos que os contradigam.

Daí a importância do Estado criar os incentivos para que as pessoas fiquem em casa. Daí a importância do isolamento social, acompanhado do auxílio emergencial para trabalhadores, e compensações para micro e pequenos empresários, para que todos possam ficar em casa, despreocupados.

Apostar na liberdade e bom senso do cidadão, em contexto de uma perigosa epidemia, é não só admitir, mas promover doença e morte. O prolongamento afeta não só as vidas, que não são prioridade para os liberais da morte, mas também dificulta a retomada da economia, esta sim tão preciosa para eles, e cria o contexto para um caos social que, como dito no texto anterior, era a aposta de Bolsonaro para dar um golpe de Estado. Mas voltemos ao tema principal.

No discurso do liberalismo da morte, as medidas de isolamento social são "violações aos direitos fundamentais do cidadão". Expor-se ao vírus, por outro lado, é um risco que ele tem o direito de assumir se assim o quiser – isto é, se a pessoa acredita que existe uma epidemia de coronavírus.

Não é difícil refutar a alegação de bolsonaristas que de o isolamento social é uma forma de ditadura concebida para derrubar o presidente, ou impor o comunismo, ou seja lá qual for a sua teoria da conspiração preferida. Direitos fundamentais se equilibram.

Cada um deles não pode ser usado para minar outro, e em circunstâncias excepcionais, como guerras e calamidades públicas, eles podem sofrer restrições mais severas. Por exemplo: se o seu direito de ir e vir coloca em risco a vida de outra pessoa, o Estado tem o dever de restringi-lo, para preservar a vida de todos.

É claro que sempre existe o risco de abuso do poder do Estado. É para isso que existem as associações da sociedade civil, as organizações de direitos humanos, os partidos políticos e até mesmo as igrejas, que podem recorrer às instâncias superiores do Estado contra tais abusos.

É para isso que existem três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um fiscalizando e equilibrando os poderes uns dos outros, evitando medidas autoritárias. É a boa e velha democracia representativa, e ninguém até hoje divisou regime melhor para, ao mesmo tempo: prevenir a tirania, promover a liberdade e garantir os direitos fundamentais do cidadão.

Na semana retrasada, enquanto a imprensa debatia o "Novo Bolsonaro", moderado, democrático, contido nas aparições e declarações, o presidente, sempre disposto a desmentir os otimistas, vetou lei do Congresso que, diante da absurda flexibilização dos governadores, buscava regulamentar a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos: nos locais de trabalho, escolas e igrejas. O pretexto foi de que a lei poderia servir para burlar a inviolabilidade do lar; vetou até mesmo a obrigatoriedade da disponibilização de máscaras para trabalhadores e, posteriormente, a obrigação do uso de máscaras em presídios.

Já na semana passada, Bolsonaro vetou 14 trechos de lei aprovada pelo Congresso para proteger os povos indígenas durante o período de pandemia. Dentre os vetos estão: o fornecimento pelo governo de água potável, higiene e leitos hospitalares e a aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea. Bolsonaro alegou inconstitucionalidade e a não discriminação dos recursos para financiamento das medidas.

Assim, os povos indígenas ficam em situação de extrema vulnerabilidade durante a pandemia. Ao mesmo tempo, dá-se o início da discussão sobre a reabertura das escolas. Assim, o Estado brasileiro aos poucos renuncia ao seu dever primordial – base do contrato social – de preservar vidas. Afinal, a liberdade implica riscos – a morte é apenas um deles. E não cabe ao Estado proteger o cidadão de morrer – e de matar. Chegamos ao ápice do liberalismo da morte.

O alarde bolsonarista em torno da pandemia como pretexto para "ditadura", além de ser ela mesma pretexto para uma ditadura de verdade, só é possível por conta da estupidificação do liberalismo brasileiro, que não vem de hoje. Começa com os empresários de antanhos, que entendem por "liberalismo" auferir o máximo de lucro à custa da superexploração do trabalhador e rejeição ao pagamento de impostos.

Amplifica-se com a difusão da Escola Austríaca de Economia, que depois de aplaudir as ditaduras militares na América Latina e fazer do Chile seu laboratório de políticas econômicas, gerando crescimento tanto do PIB quanto das desigualdades, criou uma geração de economistas e ativistas que acreditam que desemprego, corte de impostos e desigualdade são bons; organização sindical, serviços públicos e seguridade social são ruins.

E chega, enfim, ao que se apelidou de "pensamento libertário", que faz sucesso entre jovens que não entendem o conceito de contrato social nem por que numa sociedade somos corresponsáveis uns pelos outros e por que o Estado tem o dever de proteger a vida do cidadão, inclusive de si mesmo – por exemplo, prevenindo um suicídio ou salvando um suicida, ou intervindo quando alguém se expõe inutilmente ao perigo – e, além disso, tem o dever de coordenar a solução de problemas complexos.

Por décadas as ONGs ambientalistas enfatizaram a responsabilidade individual na proteção ambiental: reciclagem, redução do uso de água, redução do uso do carro, até mudanças alimentares. Além dessas campanhas ignorarem, curiosamente, os principais poluidores do planeta – agropecuária e indústria – elas se mostraram um fracasso para qualquer melhoria nas condições do planeta.

A crise ambiental só se amplia. Por quê? Porque indivíduos isoladamente podem não aderir às campanhas, nem podem agir coordenadamente. Para controlar a crise climática e ambiental, é necessário um esforço concertado, que só pode ser liderado pelo Estado, que pode implicar sanções, sim, mas também incentivos – oferecer benefícios aos cidadãos e, sobretudo, incentivar inovações tecnológicas que por sua vez tornarão a economia mais dinâmica e produtiva. Ativismo governamental, como o chamam os estadunidenses, não implica tirania, nem supressão de liberdades.

O caso do coronavírus é um pouco diferente porque requer uma restrição – não supressão – da liberdade de ir e vir e também de aglomeração. Porém, essa restrição durará tanto menos quanto mais amplamente for promovida pelo Estado e maior adesão tiver da população. Infelizmente, de Jair Bolsonaro, o liberalismo da morte espalhou-se por toda a sociedade. Esse é o efeito corrosivo que pode ter um governante. Um grande líder inspira um povo a superar as adversidades. O líder inepto conduz seu povo ao desastre. O tirano, ao sacrifício inútil.

O liberalismo é uma filosofia que, ao longo dos tempos, produziu muitos nomes importantes: Adam Smith, John Locke, Thomas Paine, Immanuel Kant, John Stuart Mill, John Rawls. Infelizmente, como toda tendência política, ela tem um ponto fraco.

A confiança na liberdade e nos mercados, quando cega e irrestrita, estimula a insociabilidade: a ideia de que os fracassados fizeram por merecer seu infortúnio, e são indignos de ajuda. Essa ideia, levada um pouco mais adiante, leva à conclusão de que os pobres, os incapacitados, os idosos, devem desaparecer, pois são um entrave ao progresso geral. Essa ideia é conhecida como "darwinismo social", uma tentativa preconceituosa e já refutada de aplicar o conceito de evolução, da biologia, para a sociedade. Num país desigual de passado escravocrata, como o Brasil, esse darwinismo social tem sido uma das marcas mais fortes do liberalismo nacional.

Muita gente me pergunta como é possível conciliar o aparente liberalismo de Jair Bolsonaro com minha definição de fascismo. Além do oportunismo político já referido – em que ele não é pioneiro, uma vez que Mussolini defendeu teses liberais em seus escritos, e com apoio dos liberais chegou ao poder – o darwinismo social oferece outra resposta.

Ele é, junto com o medo ou ódio da esquerda, a afinidade que possibilita a associação entre liberais e fascistas. A crença que iguala o neoliberalismo de Paulo Guedes, empresários que não querem fechamento temporário de seus estabelecimentos e Jair Bolsonaro. O liberalismo da morte é uma forma radical de darwinismo social, que se manifesta no fascismo bolsonarista, e pode vir a se revelar também uma faceta atualizada da vocação de todo fascismo: o genocídio.

* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.


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