Populismo ou fascismo? Especialistas debatem as bases do bolsonarismo
* Raphael Tsavkko Garcia
No fim do mês passado, o historiador Bruno Frederico Müller escreveu neste mesmo espaço que não havia dúvidas de que o bolsonarismo seria uma forma de fascismo. Para ele, "deixar para trás este tabu, muito mais do que um mero exercício intelectual, é uma condição para reagir à altura da ameaça bolsonarista." A posição de Müller, no entanto, não é consenso.
Especialistas têm, desde o começo do governo Bolsonaro, debatido sobre o seu caráter autoritário e, mais ainda, sobre suas características fundamentais e onde se encaixaria no espectro político. Seria um governo populista de direita? Fascista? Meramente antidemocrático ou mesmo teria aberto as portas para grupos autoritários espalharem sua ideologia de forma mais efetiva?
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Em entrevista ao site judeu-americano The Forward, Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea na UFJF, explicou que, mesmo não sendo um fascista clássico, Bolsonaro possui uma "característica marcante do fascismo: a obsessão pela morte como forma de poder". À Folha, Caldeira Neto classificou o governo Bolsonaro como "um populismo típico da extrema direita".
O blog conversou com outros especialistas que focam suas pesquisas nos mais diversos aspectos da extrema direita brasileira e os questionou sobre o caráter e a posição/espectro ideológico do bolsonarismo. Apesar de muitos pontos em comum, a classificação do bolsonarismo efetivamente como uma tendência de caráter fascista não é adotada de maneira uniforme.
Para o professor de relações internacionais da PUC-SP, David Magalhães, "o governo Bolsonaro se enquadra dentro de uma direita radical populista e que, episodicamente, flerta com a extrema direita." Direita radical porque "tem traços autoritários, herança do nosso caudilhismo militaresco, e populista, uma vez que o bosonarismo se revela uma força antielitista e, ao mesmo tempo, iliberal". Entretanto, para Magalhães, Bolsonaro "não é fascista."
Leandro Pereira Gonçalves, professor de História da América Contemporânea e do Brasil Republicano do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e que acaba de lançar junto com Caldeira Neto o livro "O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo", concorda com Magalhães. Para ele, são muitos grupos que formam o bolsonarismo, logo, não haveria uma "uma tendência única."
"O bolsonarismo acaba conseguindo unir várias tendências da direita no Brasil e muitos desses grupos defendendo pautas autoritárias. Tem o bolsonarista radical que está nas ruas defendendo a intervenção militar e a volta do AI-5, mas ao mesmo tempo tem o bolsonarista liberal que dialoga com as pautas do Paulo Guedes. Tem aquele bolsonarista que não defende uma ditadura, mas que também não está muito preocupado com a questão liberal, mas é aquele bolsonarista dos costumes, às vezes de um grupo neopentecostal," explica Gonçalves.
Professor de ciência política e relações internacionais da FGV-EAESP, Guilherme Casarões aponta que o bolsonarismo é um movimento fundado sobre alguns pilares ideológicos: "militarismo/armamentismo, nacionalismo, cristianismo. Elementos liberais aparecem no discurso de maneira esparsa e seletiva, em geral para aproximar o governo das elites econômicas do país e do exterior."
A presença de Paulo Guedes no Ministério da Economia é um desses acenos liberais às elites econômicas, e uma forma de disfarçar o real caráter autoritário do governo.
Casarões conclui que "o populismo é a estratégia política do bolsonarismo, que se traduz na rejeição ao sistema/establishment, na construção imaginária de um 'povo' a quem Bolsonaro diz ser leal, ao recurso às massas via manifestações e redes sociais e à criação permanente de inimigos: dos mediadores tradicionais (imprensa, universidades, partidos e instituições políticas) a lideranças internacionais associadas às ideias genéricas de socialismo e globalismo."
Uma salada ideológica que reflete sua própria base de apoio que, logo após sua eleição, congregava dos liberais do MBL a monarquistas, integralistas, fundamentalistas evangélicos e até mesmo grupelhos neonazistas, além de toda uma gama de grupos que levantavam a bandeira da luta contra a corrupção e contra "tudo que está aí."
É o que também afirma David Nemer, professor no departamento de estudos da mídia da Universidade da Virgínia e colaborador deste blog. "O bolsonarismo é um movimento sociopolítico sustentado por diversas correntes de pensamento que não são necessariamente complementares e (são) às vezes antagônicos. O presidente se utiliza dessas correntes para justificar a militância para o patriotismo, os bons costumes, os valores familiares, a lei e a ordem e a caçada à esquerda. O bolsonarismo se encontra em constante crise de identidade, já que essas correntes de pensamento se chocam o tempo todo, o que mostra que o bolsonarismo não tem uma fundação ideológica definida."
Nemer procura conceituar o fascismo. Para ele, trata-se de "um movimento político de massa caracterizado por um Estado totalitário de partido único, pelo ultranacionalismo, pelo culto ao uso da força, pela perseguição à oposição, pelo controle estatal da sociedade."
Só por essa definição, diz Nemer, "é possível associar diversas falas e ações tomadas por Bolsonaro às atitudes fascistas." Ele explica que "Bolsonaro constantemente prega pela eliminação da oposição, quando fala em 'fuzilar a petralhada' e que a ditadura militar deveria ter matado '30 mil, e começando por Fernando Henrique Cardoso;' Bolsonaro tenta inflamar o nacionalismo ao exaltar o patriota e cidadão de bem, que são figuras imaginárias de um brasileiro ideal que é cristão e obedeceria ao comandante da nação – o próprio slogan da campanha do Bolsonaro é uma cópia descarada do slogan da Alemanha nazista 'Alemanha acima de tudo;' ele também caminha para o controle da sociedade ao tentar aparelhar instituições democráticas como a Polícia Federal e ABIN."
Gonçalves, porém, não se mostra convencido. Ele reconhece que "grande parte dos militantes bolsonaristas podem até enxergar no Bolsonaro uma liderança de tipo fascista, aquele que vai acabar com os comunistas, com os petistas, com a esquerda, vai acabar com a ideologia de gênero, vai instaurar um regime" porém explica que "ver elementos de práticas [fascistas] não significa que o fascismo está consolidado ou está formado." Para ele, é precoce considerar Bolsonaro ou seu governo como fascistas, mesmo diante do que enxerga como "práticas próximas ou até mesmo semelhantes" ao fascismo histórico.
Aline Burni, doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora no German Development Institute (GDI), concorda com Gonçalves. Para ela, o governo Bolsonaro não é fascista, porém "tem algumas características também presentes" no fascismo. Para ela, o fascismo "é um fenômeno historicamente delimitado, que se refere a certos movimentos e regimes ultranacionalistas, totalitários, autoritários e violentos do período entreguerras," logo, referir-se ao governo Bolsonaro como fascista ou nazista seria "mais uma forma de demarcar oposição política a ele do que de entendê-lo," ao passo que o uso recorrente desse expediente acabaria "banalizando o termo".
Como os demais, a pesquisadora aponta para diversos elementos ou características que estiveram presentes no fascismo, mas nota que "diferente do regime fascista, nós (ainda) vivemos em uma democracia, o apoio popular ao Bolsonaro não é massivo, o Estado não eliminou as oposições políticas, há certo controle do governo por parte das outras instituições e as liberdades individuais, em geral, ainda vigoram."
O governo Bolsonaro seria, então, "um movimento populista de extrema direita," ou a "oposição do 'povo' e das 'elites' a partir de critérios morais: o povo é eminentemente bom e autentico, a elite é má e corrupta." Dentro dessa lógica, Burni explica, os interesses entre esses dois grupos seriam irreconciliáveis e apenas o líder populista é capaz de representar a vontade e a voz do povo.
Além de populista, o bolsonarismo seria de extrema direita, ou seja, tem tendências antidemocráticas e autoritárias. E "certamente o ambiente democrático se deteriorou muito no Brasil sob o governo Bolsonaro [com] as agressões a repórteres e jornalistas que criticam o governo; a banalização do ataque a minorias e a apologia à violência contra opositores políticos, que ficou 'normalizada' no discurso político."
Mas Burni faz algumas ressalvas. "O próprio fato de que o secretario da Cultura foi demitido, que o ex-ministro da Educação esteja sendo juridicamente investigado por causa das declarações xenófobas mais recentes, as investigações em curso a respeito das potenciais conexões da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro, entre outras 'freadas' no bolsonarismo indicam que nossa situação é bem diferente dos regimes totalitários, unipartidários, ditatoriais representados pelo fascismo no poder."
Ao contrário de Gonçalves, Neto e Burni, Nemer encontra diversos paralelos entre o bolsonarismo e o fascismo clássico. Citando a obra do filósofo Jason Stanley, "Como funciona o fascismo", Nemer aponta que elementos como o passado mítico, a propaganda, o anti-intelectualismo, a "lei e ordem", dentre outras marcas do fascismo apontadas por Stanley, são características fundamentais do bolsonarismo.
Apesar de sua discordância em relação à classificação de Bolsonaro e do bolsonarismo como fascismo, Gonçalves concede que "após a Segunda Guerra Mundial e o fascismo foi reinventado numa ótica democrática." Em outras palavras, o fascismo brasileiro, assim como o europeu, acabou por se adaptar à democracia e, hoje, grupos neofascistas encontram um terreno fértil para práticas antidemocráticas e encontrou no bolsonarismo uma forma de colocar em prática seus métodos.
Por isso, explica Gonçalves, "os integralistas que estavam presos nas redes sociais, nos seus sites, nos seus blogs, nas suas discussões por e-mail, há dois anos estão nas ruas."
Grupos Integralistas estiveram por trás da invasão da UniRio em 2018 e do Molotov jogado contra a sede da produtora do grupo de humor Porta dos Fundos em 2019. "Eles se sentem seguros," explica Gonçalves.
Eles não esperam ter respaldo, mas "sabem que o ambiente político brasileiro não vai criar um julgamento tão radical em relação a esses atos e que, por mais radical que sejam, (vão) ser relativizado(s), (vão) ser visto(s) como algo normal, como algo rotineiro por conta desse ambiente" criado pelo bolsonarismo.
Como bem ilustra esse debate, é possível que seja cedo ou impreciso chamar Bolsonaro de fascista. O maior problema é que, quando ficar evidente para todos, talvez seja tarde demais.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
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