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Fake News: Decisão de Moraes abre novos caminhos para o debate

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27/07/2020 10h59

O ministro do STF Alexandre de Moraes (Crédito: Carlos Moura/ SCO/ STF)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

A decisão do ministro Alexandre de Moraes pela suspensão de contas no Twitter e Facebook de figuras de destaque na rede bolsonarista ativou, mais uma vez, a guerra de narrativas em torno das chamadas "fake news" na ciberesfera, com apoiadores do governo alegando "censura" e opositores falando em "grande dia".

Para além dessa disputa de hashtags online, a decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) representa, talvez, um ponto de inflexão dentro da nossa experiência histórica com as fake news, considerando o seu papel na degradação do debate público e de que maneira reagimos – ou não reagimos – diante delas.

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Para começar a reflexão, precisamos voltar algumas semanas no tempo, quando as mesmas personalidades das contas bloqueadas foram alvos de mandados de busca e apreensão no âmbito do inquérito das fake news, que tramita no STF e do qual Moraes é relator.

Em meio a tais acontecimentos, mas advindo de debates que remontam ao ano de 2017, tramita no Congresso um projeto de lei já aprovado no Senado e que que ainda passará pela Câmara dos Deputados. É o PL 26.630/2020, a chamada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que já tem gerado muitas reações.

A PL foi criticada por bolsonaristas, como alguns dos alvos do inquérito, mas não vem ao caso analisar a fundo seus argumentos. Cabe apenas mencionar que alguns desses protestos aludem ao princípio da liberdade de expressão, fundamental para a estruturação da esfera pública, necessária ao bom funcionamento das democracias e que tem sido sistematicamente sequestrada pelas fake news. Volto ao assunto à frente.

Merecem maior atenção as duras críticas feitas pelo jurista Lenio Streck à PL 26.630/2020, publicadas em artigo na Folha de S. Paulo. Para ele, em nome da necessidade de vencer um problema real que são as fake news, a lei sacrifica direitos democráticos de liberdade, privacidade e inviolabilidade das comunicações, além do elogiado Marco Civil da Internet. Nesse processo, segundo suas palavras, joga-se fora a água do banho com a criança dentro.

As críticas do jurista não são nem de longe comparáveis às dos bolsonaristas, uma vez que partem do pressuposto de que as fake news são problemáticas e devem ser combatidas. O centro delas é sobre como os meios de combatê-las são pensados. Em artigo anterior, Streck vê o projeto como uma irrefletida aposta de que o problema poderá ser resolvido com o aumento do controle estatal da internet, além de punitivismo e certa flexibilização de direitos democráticos, o que é, em si, temerário, além de ter eficácia, no mínimo, duvidosa.

De toda forma, também há quem aponte avanços nessa frente de combate – a jurídica e legislativa – às fake news, fiando-se à expectativa de que sua punição e a desarticulação de seus grandes disseminadores possam ser uma medida efetiva contra o problema.

Mas há duas questões essenciais para além desse debate. A primeira é que não sabemos bem definir o que são as fake news; a segunda decorre da primeira e está no fato de que, mesmo cientes do enorme problema que elas se tornaram às democracias, não sabemos o que fazer com elas. Entretanto, conforme disse no começo, entendo que podemos estar diante de uma virada na nossa experiência histórica – o que não necessariamente quer dizer que teremos sucesso em enfrentá-las.

Tratando do primeiro pressuposto, do não entendimento do que as fake news são, vários erros que cometemos decorrem de uma oposição que fazemos entre elas, desde a forma como elas são nomeadas ("notícias falsas"), e as notícias divulgadas após apuração com devido rigor, de acordo com os devidos protocolos de tratamento e mediação da informação com a sociedade.

Essa mediação da informação tendo a verdade (ainda que como um ideal) no horizonte está no âmago das democracias modernas. Como explicou Jürgen Habermas no livro Mudança estrutural da esfera pública, a modernidade foi marcada, na sua origem, pela formação de espaços nos quais era feito o uso público da razão, e a imprensa tem um papel fundamental nesse aspecto, juntamente com outros espaços como academias de ciências, universidades, entre outros.

Por esse caminho, ideias debatidas em espaços autônomos em relação ao tradicionalismo e os dogmatismos das sociedades pré-modernas puderam, progressivamente, tomar os fóruns coletivos de discussão. Assim, num espaço de aproximadamente um século (entre o XVII e XVIII), temas como a irracionalidade das formas de justiça baseada em penas públicas, como os açoites ou os autos de fé inquisitoriais, bem como o desejo da criação de sistemas de governo em que a vontade soberana das pessoas substituísse a soberania dos monarcas, algo antes impensável, ganhavam maior amplitude nos variados ambientes de debate.

Entendo que o fato de esse uso público da razão ser parte constitutiva do que viriam a ser as democracias liberais condiciona, em grande medida, nossas reações insuficientes às fake news. Como disse, o norte almejado por esse uso público da razão é a verdade. E ainda que o termo remeta a uma metafísica, na modernidade esse termo passa a se referir a algo revelável através da crítica, da investigação, a ser sustentado com fatos – substituindo-se a ideia de uma verdade que vem "de fora", revelada a "escolhidos".

Por esse entendimento de verdade, a notícia falsa é muitas vezes reduzida a informação inverídica, falsa, mal apurada ou mesmo propositalmente distorcida, o que pressupõe, erroneamente, que uma informação dessas seja construída dentro do mesmo terreno de busca por verdades que o da imprensa nos moldes tradicionais das democracias.

Quem concebe as fake news como mentiras ou informações mal sustentadas segundo métodos críticos e procedimentos racionais ignora o seu caráter de rejeição à própria racionalidade. Dito de outro modo, o crédulo na infame "mamadeira de piroca" das eleições de 2018 se importa menos com a ausência da factualidade do pitoresco objeto imaginário, e mais com o pânico moral gerado por tal informação, cuja construção remete a todo um campo de rejeição irracional a valores democráticos diversos.

Nesse sentido, é muito importante lembrarmos do artigo de Christopher Douglas publicado em 2017 no Huffington Post, em que o autor explica como as fake news têm sua origem nos círculos fundamentalistas religiosos desde o início do século XX.

Assim como as instâncias de usos públicos da razão são historicamente importantes no sentido de ocupar espaços maiores com debates em torno de valores liberais democráticos, os lugares de circulação de "fatos alternativos" articulam e organizam visões de mundo em comunidades que os rejeitam. Mais que isso, ocupam espaços nos quais essas rejeições ultrapassam seus nichos.

Quando vemos essas informações circulando, percebemos que formam um ecossistema de informação autônomo e muito bem definido. Existem aquelas figuras que são emissores autorizados de informação e, por conseguinte, aquelas que são prontamente rejeitadas.

Scott Randall Paine, em artigo que analisa o discurso fundamentalista, aponta para quatro aspectos típicos deles ao longo da história. Para falar das fake news vou me ater a somente dois deles: o primeiro é psicológico, caracterizado por um subjetivismo fechado, que sintetiza uma atitude de resistência à correção, não inclinação ao diálogo ou qualquer simpatia ou empatia a quem tiver posições contrárias ou alheias as do fundamentalista; outro aspecto é o epistemológico, relacionado às fontes de conhecimento compartilhado por esses fundamentalistas, que é marcado pelo fideísmo radical ou submissão a autoridade como fonte exclusiva ou predominante de certeza, conferindo a eles atitude de oposição ao enriquecimento pela filosofia, ciências, e desenvolvimento através do debate crítico.

Tomando esses dois aspectos do fundamentalismo, podemos entender que as fake news compõem formas de ver o mundo que são fechadas a quaisquer demonstrações da falibilidade do universo de informações que compartilham. Isso, em grande parte, também se deve a adoção de fontes autorizadas de suas certezas, nas quais se incluem seus influencers, gurus, grupos fechados, bibliografia, portais de notícias, entre outros. E a escolha dessas fontes também implica na rejeição dogmática do resto, criando-se e reproduzindo-se a oposição nós esclarecidos x outros "inimigos", "manipulados", "comunistas", etc. Um efeito bolha.

Quando vemos um dos bolsonaristas que tiveram seus perfis suspensos defendendo que "a masturbação é mais nociva à saúde que o cigarro, além de matar neurônios", por mais que o enunciado em si pareça vazio de qualquer coisa que lembre racionalidade, ele na verdade serve para alimentar esse ecossistema subjetivamente fechado, reforçando o papel de autoridades de fala em torno de figuras como a dele – afinal, quem mostrar estudos científicos que mostrem o absurdo de sua afirmação é uma espécie de inimigo.

Trata-se de um conjunto de aspectos que se concilia muito bem com a natureza disruptiva das novas direitas, "contra tudo o que está aí".

E é aí que chegamos ao segundo pressuposto, que é o de não sabermos o que fazer diante das fake news. O que podemos dizer, concordando com o texto tão elucidativo quanto desolador de Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept Brasil, é que diante de uma esfera pública que se reestruturou com a web 2.0, junto com as redes sociais e aplicativos de mensagens, o campo progressista perde por W. O. no combate por fazer valer seus princípios e discursos para fora de seus espaços tradicionais.

E é diante disso que ressalto que a decisão do ministro do STF pode ser um importante ponto de inflexão, considerando que a experiência que for depreendida das ações tomadas, pela Justiça, Poder Legislativo e sociedade civil contra as fake news poderá nos apontar de maneira mais clara as formas de entender e agir diante desse problema concreto.

O fato é que a extrema direita se beneficiou e conseguiu ocupar mais espaços numa esfera pública que foi reestruturada nas duas últimas décadas, sobretudo a partir da segunda metade da última. Nesse sentido, a experiência histórica que vivemos no agora dirá bastante sobre nossa capacidade de ocupar essa esfera pública e reorientá-la segundo os valores democráticos. As soluções para isso, que nunca foram claras, podem começar a parecer mais factíveis.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


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