O bolsonarismo como um populismo de extrema-direita
[RESUMO] Este ensaio propõe o enquadramento do bolsonarismo como um populismo de extrema-direita. Ainda que esta classificação já tenha sido aventada em outros momentos, pretendo explorar mais a fundo suas potencialidades e o que a diferencia de outras abordagens sobre o fenômeno. Assim, começo apresentando quais seriam as características que permitem enquadrar o bolsonarismo como um movimento de extrema-direita e aquelas que permitem enquadrá-lo como um populismo. Posteriormente, contraponho a abordagem aqui desenvolvida a outros enquadramentos, a meu ver, erroneamente associados ao governo Bolsonaro, para, por fim, destacar como a definição do bolsonarismo como um populismo de extrema-direita nos ajuda a compreender sua relação com a democracia e a história do país.
* Igor Suzano Machado
Quando ficou claro quem sairia vencedor das eleições de 2018, parecia que o país confirmava uma maldição que nos acometeria a cada 29 anos. Após Jânio Quadros e Fernando Collor, teríamos mais uma vez a inusitada ascensão ao poder de uma figura tão excêntrica na política quanto incapaz de conduzir um governo, o que resultaria em um mandato marcadamente caótico e curto.
Já em seus primeiros meses, a aventura de Jair Bolsonaro na presidência da República parecia repetir o enredo, ao ponto de o presidente dizer algo muito próximo à afirmação de Jânio Quadros de que forças ocultas estariam o impedindo de governar. Naquele momento, parecia razoável esperar, se não a renúncia de alguém nitidamente amedrontado no cargo, o impeachment de um presidente que experimentava rápida queda de popularidade.
Entretanto, essa queda de aprovação popular não se transformou em um mergulho vertiginoso, escorando-se numa rede de segurança garantida por um piso de popularidade inabalável, mesmo diante da perda daquele que parecia um dos mais importantes pilares desta mesma popularidade: o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o ex-juiz e prócer da Lava Jato, alçado a símbolo máximo do combate à corrupção no Brasil.
Neste ponto, aquela figura que outrora apareceu apavorada em Davos e que conduzia de forma trôpega suas negociações políticas já se transformara num presidente cada vez mais à vontade no cargo, inclusive, para usar seus poderes no tensionamento das instituições. Portanto – tendo ainda em vista a resiliência da aprovação bolsonarista, mesmo diante da desastrosa gestão da crise santitária causada pela pandemia da covid-19, por parte do governo federal – tudo passa a indicar que estamos diante de algo mais complexo, de um novo fenômeno político, sobre o qual analistas passaram a se debruçar com mais atenção e afinco, buscando melhor compreender suas características distintivas, modus operandi e possíveis caminhos para o sucesso ou fracasso de seus anseios.
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De minha parte, confesso que duas áreas de estudo foram capazes de me fornecer as melhores pistas para compreensão do "bolsonarismo", se assim podemos designar tal fenômeno. A primeira delas, os estudos sobre o populismo, e a segunda, os estudos sobre governos de extrema-direita, como nazismo e fascismo. Não à toa, este mesmo blog publicou análises em que essas duas linhas se destacam na compreensão do governo Bolsonaro.
O mandatário brasileiro já foi aqui aproximado ao fascismo, mas, para aqueles que não concordam inteiramente com esta tese, também já foi associado ao populismo. Concordo em parte com ambas perspectivas e argumentarei aqui que o bolsonarismo é melhor caracterizado como um populismo de extrema-direita.
Se o que chamo de "extrema-direita" pode ser lido como fascismo, vai do gosto do leitor e de como este leitor responde a duas questões relacionadas à análise do fascismo: o quanto, de um lado, o fascismo é dependente de um contexto histórico específico, que não se confunde com o contexto brasileiro atual, e, de outro, o quanto o fascismo é necessariamente associado a uma forma estatal totalitária, à qual, felizmente, e não exatamente por falta de vontade do presidente, ainda não chegamos.
O bolsonarismo e a extrema-direita
Não há como negar que exista uma série de sobreposições entre o bolsonarismo e o fascismo em seu sentido clássico, fazendo com que, mesmo distantes de um Estado fascista, estejamos diante de uma mentalidade fascista disseminada dentre diversos órgãos de governo e personagens da vida civil. As importantes milícias paraestatais que caracterizaram a ascensão do fascismo na Itália encontram paralelo possível nas milícias digitais bolsonaristas, cujos processos de intimidação virtuais têm cada vez mais tentado atingir meios não digitais, como mostraram os acampamentos dos 300 do Brasil.
Além disso, uma das características distintivas das ditaduras de extrema-direita do século passado, quando comparadas a ditaduras anteriores, reside em, ao invés de excluir a população da política, apostarem numa "hiperpolitização" dessa população, o que também nos remete facilmente à forma como opera o bolsonarismo.
Por fim, quando essas ditaduras de extrema-direita, em oposição às democracias liberais contemporâneas, apostam, como na lição de Carl Schmitt, na incompatibilidade entre democracia e liberalismo, insistindo em uma vontade popular que só pode se manifestar de forma unitária em um líder absoluto, sem admitir o pluralismo, estamos diante de uma compreensão da política que muitas vezes encontra eco entre apoiadores do governo e mesmo entre suas lideranças e referências intelectuais, como o influenciador digital Olavo de Carvalho.
Se abandonamos os exemplos históricos clássicos das ditaduras de extrema-direita e nos concentramos apenas no contexto brasileiro, também parece claro que a posição do bolsonarismo na nossa tradição política está no extremo do espectro destro da mesma. Concatenando discursos tradicionais da direita nacional, desde o lacerdismo contra a imoralidade na política, passando pela garantia da ordem da ditadura militar, e chegando aos clamores por mais liberalismo econômico, característicos das nossas direitas mais atuais, o bolsonarismo radicaliza o nosso direitismo tanto pela concentração de seus diversos clamores quanto por, muitas vezes, contrapor a tais clamores as próprias estruturas da nossa combalida democracia, desafiando frontalmente a separação de poderes, a impessoalidade na administração pública e o respeito a direitos constitucionalmente garantidos.
O bolsonarismo e o populismo
Uma vez posicionado o bolsonarismo na extrema-direita, cumpre agora explicar a dimensão populista que me faz enquadrá-lo como um populismo de extrema-direita. Quanto a este ponto, antes de mais nada, é importante destacar o que estou chamando de populismo, haja vista os diversos enquadramentos que o termo já sofreu ao longo do tempo e em diferentes países. Para esclarecer, destaco que, ao falar de populismo, faço referência aos debates contemporâneos sobre o tema que buscam dialogar com a contribuição original de Ernesto Laclau, em diversos de seus escritos, mas, especialmente, no livro A razão populista.
Retirando do termo a carga negativa que lhe é geralmente associada, Laclau adota uma perspectiva em certa monta mais formal acerca do populismo, que emerge como uma forma política potencialmente presente em qualquer circunstância ou espectro ideológico, em que uma liderança popular se torna porta-voz do "povo", tido como uma entidade que congrega diversas demandas que se igualam em sua oposição a uma "elite", cuja posição de elite é questionada como ilegítima. Conforme destaca Laclau, o populismo opera uma simplificação da sociedade, entendendo-a como composta basicamente de dois polos antagônicos, nos quais o polo popular e oprimido antagoniza o polo ocupado por uma elite opressora.
Um primeiro ponto em que podemos notar a associação do bolsonarismo ao populismo reside nos fatores que tradicionalmente favorecem a emergência de uma liderança populista, semelhantes a contextos que permitiram a ascensão do nazismo e do fascismo, e que, muito claramente, podem ser associadas ao contexto brasileiro atual. Francisco Panizza, no interessante inventário sobre as práticas populistas que faz na introdução do livro El populismo como espejo de la democracia, aponta como uma das características do populismo é sua emergência em contextos de "fracasso das instituições sociais e políticas existentes para limitar e regular os sujeitos políticos dentro de uma ordem social relativamente estável", sendo o populismo, segundo ele, "um modo de identificação característico de tempos de instabilidade".
O autor também destaca que o populismo emerge em situações de ruptura da ordem social e perda da confiança no sistema político como sendo capaz de restaurá-la, assim como em contextos de esgotamento de tradições políticas e de desprestígio de partidos políticos, em períodos de mudanças econômicas, demográficas e culturais e em situações de aparecimento de formas de representação política externas às instituições políticas tradicionais, dando destaque à emergência de novos meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão – aos quais acreditamos que podemos, hoje, adicionar a internet e suas redes sociais.
Todo um contexto favorável ao populismo parece, portanto, emergir no Brasil contemporâneo, especialmente após a sobreposição das crises econômica e política nos mandatos da presidenta Dilma Rousseff, seu tumultuado processo de impeachment, as revelações da Operação Lava Jato sobre as entranhas corrompidas da política nacional, e o consequente desgaste dos partidos políticos tradicionais, tudo isso tendo como pano de fundo o desenvolvimento de novas tecnologias de compartilhamento de informação digital, como o Whatsapp.
Se ninguém titubearia em associar a emergência do bolsonarismo a uma resposta a essa situação de desorganização política, crise econômica, revolta popular e mudança tecnológica, menos consensual e óbvia pode ser vincular essa resposta a uma dicotomização da sociedade brasileira entre povo e elite, vindo Bolsonaro a ocupar a posição de representante desse povo. Esse enquadramento parece ainda menos óbvio ao lembrarmos que, em sua eleição, o atual presidente contou com forte apoio das elites, sendo mais popular entre eleitores homens, de maior escolaridade e maior renda.
Contudo, é importante salientar que "povo" e "elite", sob o enquadramento de populismo patrocinado por autores como Ernesto Laclau, não são designações sociológicas baseadas em características objetivas de um conjunto de pessoas, mas sim uma forma de identificação social, baseada numa série de associações e oposições que permitem a um sujeito se compreender como parte do povo e, consequentemente, identificar a elite que o oprime. Assim, o povo é uma abstração cujo conteúdo concreto é construído na disputa política.
Se o populismo de esquerda tende a construir um "povo" em contraponto a elites econômicas, oligarquias tradicionais e grupos étnicos privilegiados, mais recentemente, o Brasil viu serem opostos ao povo, pela direita, elites políticas corruptas, ou elites culturais que defenderiam valores estranhos ao povo, trazendo de volta para dentro do campo popular, por outro lado, empresários e grandes proprietários de terra. Dessa forma, passa a ser plenamente possível a elites econômicas se identificarem como parte do povo oprimido por uma elite que não se fez como tal por meio do trabalho, mas sim pela corrupção, abuso de poder e engodos dos mais diversos.
O povo contra as elites culturais
Ainda que o bolsonarismo tenha habilmente se apropriado da contraposição entre povo e elites políticas corruptas, em grande parte pela associação a um certo lavajatismo, sustento aqui que essa não é a principal forma de articulação da oposição povo versus elites dentro do campo governista. Se assim fosse, a perda do ministro Sergio Moro e a recente associação entre Bolsonaro e políticos do chamado "centrão", incluindo o ícone do escândalo do mensalão Roberto Jefferson, teriam tido um impacto mais dramático para a popularidade do governo. Sustento que, na esteira da desconfiança gerada pela descoberta do que nossas elites políticas faziam longe dos nossos olhos, e ancorado num domínio, sem paralelo na política nacional, das redes sociais, o bolsonarismo tem conseguido se sustentar principalmente como representante do povo contra uma elite cultural.
Por vezes associadas a super elites econômicas, representadas pela figura dos maiores empresários do Brasil e do mundo, como Jorge Lemann e Bill Gates, além de a alguns políticos com patrimônios falsamente inflados, essa elite cultural é composta por artistas, jornalistas, professores e pesquisadores que contrapõem ao povo e seus valores genuínos e seus conhecimentos práticos uma gama de teorias abstratas, que esconderiam planos secretos e intenções inconfessáveis.
Assim, muito do legado racional iluminista, desde a noção de direitos humanos até teorias científicas baseadas na coleta criteriosa de dados empíricos, passando por uma expressividade artística livre de amarras morais e religiosas, transforma-se, nessa narrativa, numa arma usada contra o povo e seu conhecimento intuitivo do mundo.
Coroando essa construção discursiva, uma famosa utopia racionalista é aditada a essa ameaça, conjurando um fantasma que, segundo um grande filósofo, rondou a Europa nos últimos séculos do milênio passado, mas que, a não ser quando transformado no próprio racionalismo, passa longe de assombrar o Brasil contemporâneo: o comunismo. E se o comunismo, mais do que o ópio dos intelectuais – como o caracterizou Raymond Aron – é, na verdade, seu plano secreto e inconfessável, o inimigo do povo é a esquerda e sua salvaguarda, preferencialmente, a extrema-direita.
A construção do povo contra elites culturais não é um expediente inédito nem na extrema-direita – já que o anti-intelectualismo, o antirracionalismo e o anti-iluminismo foram características importantes já do fascismo e do nazismo – nem do populismo, em tempos recentes. Benjamin De Cleen observou, em seu artigo The Party of the People versus the Cultural Elite: populism and nationalism in Flemish radical right rhetoric about artists, que a extrema-direita da Bélgica se esforçou por construir uma oposição do tipo, contrapondo o campo popular a intelectuais, formadores de opinião e artistas em geral.
Inicialmente uma tentativa mal sucedida de fomentar uma arte nacionalista e de direita, a estratégia do partido ultranacionalista belga passou a funcionar quando este abandonou uma perspectiva de ação, por assim dizer, mais positiva, para adotar uma mais negativa: não o fomento a uma intelectualidade e uma arte de extrema direita, mas uma perspectiva de rejeição a produtos intelectuais e artísticos que seriam portadores de ideologias elitistas contrapostas à verdadeira vontade do povo.
Expediente semelhante permite ao bolsonarismo se colocar como porta-voz dos valores genuinamente populares contra a imposição de valores e ideias restritos à elite cultural a que pertencem artistas, professores, jornalistas, etc. Aliado a outras oposições entre povo e elite, como a oposição entre povo e elite política tradicional – da qual Bolsonaro consegue se distinguir ancorado na irrelevância nacional que conseguiu manter ao longo de toda sua longeva carreira parlamentar – tal discurso configura o bolsonarismo como um típico populismo, em que uma liderança política consegue personificar a posição do povo contra os abusos e os ouvidos moucos de uma elite ilegítima.
Com cientistas e membros de organizações internacionais, como ONU e OMS, facilmente enquadráveis dentro dessa elite cultural, o populismo bolsonarista consegue, por exemplo, aparecer como porta-voz dos anseios de um povo ávido para voltar à rotina, contra a insensibilidade racionalista de elites que, do alto de seu conforto, insistem na manutenção do distanciamento social como forma de combate à pandemia de covid-19
O bolsonarismo não é um nacionalismo
O exposto até aqui compõe minha argumentação de que o bolsonarismo seria um populismo de extrema-direita. Contudo, gostaria de ainda ressaltar mais dois pontos que dizem respeito ao que o bolsonarismo não é, clarificando como a classificação do bolsonarismo como populismo de extrema-direita pode nos levar além de outras interpretações do fenômeno.
Primeiramente, gostaria de salientar que o bolsonarismo não é um nacionalismo – o que pode, a depender das exigências do leitor, fazer com que ele não seja também uma variante do fascismo. Isso pode parecer estranho, tendo em vista a vultuosa mobilização de símbolos nacionais por Bolsonaro e seus seguidores. Afirmo isso, todavia, com base numa interessante análise feita por Benjamin De Cleen e Yannis Stavrakakis, no artigo Distinctions and articulations: A discourse theoretical framework for the study of populism and nationalism, em que os autores diferenciam populismo e nacionalismo, não obstante a óbvia possibilidade de articulação entre os dois.
De Cleen e Stavrakakis salientam que, enquanto o populismo constrói uma cisão interna e vertical entre elites e oprimidos, o nacionalismo constrói uma cisão horizontal entre os de dentro e os de fora. Nesse sentido, entendo que o discurso bolsonarista, não obstante a forma como, por várias vezes, mobiliza o patriotismo, não se constitui num tipo de nacionalismo, pois constrói um inimigo opressor interno ao próprio país ou, na melhor das hipóteses, indiferente a fronteiras nacionais.
Assim, o estrangeiro não é necessariamente o inimigo do povo, diferentemente do que acontece em discursos populistas de direita em países centrais, em que estrangeiros estão ávidos para roubar empregos nacionais, ou em discursos populistas de esquerda em países periféricos, em que os estrangeiros estão ávidos para roubar as riquezas do país. Há, no máximo, a mobilização de uma oposição do povo ao abstrato "globalismo", que se trata, contudo, de um neologismo usado justamente para mostrar que uma recusa aos valores da modernidade que se espalham globalmente não implicaria numa recusa da globalização econômica.
Ainda que possa haver a associação de países estrangeiros ao "comunismo", mesmo nesse caso, a prioridade da oposição se dá com relação ao comunismo, sendo menos importante o fato de se tratar de um país estrangeiro. Quanto a isso, é sintomático como esse populismo patriótico, mas não nacionalista, convive bem com a subserviência a uma potência estrangeira aliada, como os Estados Unidos, ou com a ostentação de símbolos nacionais de outros países, como as bandeiras de Israel, já famosas em manifestações a favor do presidente.
O bolsonarismo não é um ultraindividualismo
Em segundo lugar, gostaria de salientar também que, enquanto populismo de extrema-direita, o bolsonarismo não é um ultraindividualismo, em que a tradição liberal e a tradição conservadora se encontrariam na rejeição de qualquer identidade coletiva, especialmente quando representada pelo Estado, dando suporte à clássica manifestação de Margaret Thatcher, em que a "dama de ferro" ressaltou não existir sociedade, mas apenas os indivíduos e suas famílias.
Buscando constantemente uma representação coletiva do povo e o uso do poder estatal para constranger e perseguir adversários, o bolsonarismo me parece muito mais voltado a produzir tipos específicos de laços de solidariedade mais amplos do que os laços familiares – diga-se de passagem, constantemente ameaçados pela radicalização política bolsonarista – do que a atuar como dissolvedor desses laços.
Assim, se, por um lado, por exemplo, pode-se dizer que o bolsonarismo ataca a formação de laços de solidariedade de classe numa perseguição a sindicatos, por outro, há o esforço de justificar tais separações com base em reorganizações dos trabalhadores não em torno de uma identidade coletiva de classe, mas de uma identidade coletiva política de extrema-direita, contra a esquerda, ou religiosa cristã, contra detratores da fé, ou patriótica, contra traidores da pátria, e assim sucessivamente.
Na mesma linha, o conservadorismo bolsonarista é menos um conservadorismo de não intervenção do Estado na vida das pessoas, e mais um conservadorismo em que certas escolhas de vida devem ser valorizadas em detrimento de outras, exaltando certo coletivo, moralmente caracterizado, de cidadãos virtuosos. Dessa forma, em prol do cidadão portador das virtudes adequadas – o famoso "cidadão de bem" – é possível promover a super inclusão dos indivíduos adequados e a exclusão dos indesejados, fato bem resumido pelo mantra conservador brasileiro dos "direitos humanos para humanos direitos".
Também não é plenamente verdadeira a sustentação de que a forte contraposição do bolsonarismo ao liberalismo político esconde a sua complacência perante o liberalismo econômico, haja vista as dificuldades que arautos do liberalismo econômico têm encontrado no governo, inclusive, em disputas com o desenvolvimentismo dos militares, que, por seu turno, enquanto símbolos da pátria, não foram poucas vezes agraciados com prebendas e benesses de carreira e aposentadorias nada liberais. E, por falar em militares, as escolas militares são ainda mais centrais para o discurso bolsonarista sobre a educação do que uma ampla pulverização e privatização do sistema de ensino.
O bolsonarismo e a democracia
Por todos esses motivos, considero que a designação do bolsonarismo como um populismo de extrema-direita pode ser mais útil à compreensão do fenômeno do que outros enquadramentos que têm sido apresentados em análises sobre o tema. Mas há ainda um motivo adicional que me faz apostar nessa designação, que diz respeito a quanto ela pode esclarecer a relação entre o bolsonarismo e a democracia: uma relação rodeada por ambiguidades que, por exemplo, uma noção mais tradicional de populismo não permite que sejam vistas.
Para finalizar, portanto, gostaria de retomar algumas lições de Panizza para pôr em destaque como pensar o bolsonarismo enquanto populismo de extrema-direita o situa com relação à democracia. Afinal, apesar de seu tensionamento contra direitos civis e instituições políticas, não é tão simples ou óbvio afirmar que o bolsonarismo seria antidemocrático.
O populismo, que Panizza considera um "espelho da democracia", serve bem a nos mostrar o porquê desta estranha situação em que o chamado "governo do povo" não lida bem com discursos que buscam dar protagonismo a este mesmo povo. Segundo o autor, no texto já citado anteriormente, "o populismo nos recorda dos fantasmas do totalitarismo", mas também nos lembra que "todas as sociedades democráticas modernas constituem um compromisso entre lógicas democráticas e não democráticas".
Afinal, como era a intenção dos constitucionalistas, o equilíbrio de poderes da democracia liberal moderna tanto garante quanto limita a vontade do povo. Por isso, "ao colocar perguntas incômodas sobre as formas modernas de democracia, por vezes apresentando a cara feia do povo", o populismo não se apresenta nem como epítome nem como antônimo da democracia, sendo mais precisamente caracterizado como "um espelho no qual a democracia pode contemplar a si mesma, mostrando todas as suas imperfeições, em uma revelação de si e do que lhe falta".
Se o reflexo no espelho não é sempre agradável de se ver, continua Panizza, é porque a democracia tem um reverso, que os gregos denominaram demagogia; ou porque a representação democrática nunca logra cumprir todas as suas promessas; ou ainda, porque mesmo o regime político mais democrático possível será sempre uma mistura de elementos democráticos com outros nem tão democráticos assim, com os princípios de tutela e a racionalidade tecnocrática limitando ou fazendo pouco caso do princípio da soberania popular.
Tendo tudo isso em vista, compreender a emergência do bolsonarismo diante das mudanças da sociedade brasileira em suas crises econômicas, políticas e sanitária, suas mudanças culturais e de meios de comunicação, e suas inserções ambíguas em contextos locais e globais, é também compreender melhor como o regime democrático se organiza, apresenta suas potencialidades e limites e provoca os cidadãos a criarem identidades que os situem neste turbilhão.
É compreender, ainda, as dinâmicas políticas específicas que, caso a caso, respondem a essas crises e tensões articulando essas identidades populares e nomeando inimigos do povo, e que trazem ao país mudanças em suas instituições políticas e sociais, em diferentes níveis de profundidade e longevidade. Considerar o bolsonarismo como um populismo de extrema-direita usa esta bússola para situá-lo dentro de nossa história, estejamos nós olhando para o passado, para o presente ou para o futuro.
* Igor Suzano Machado é doutor em Sociologia e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
* Gostaria de agradecer aos membros da Rede Brasileira de Teoria do Discurso, cujos excelentes debates virtuais dos últimos meses foram essenciais para dar forma às reflexões contidas neste ensaio.
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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