Bolsonaro aprendeu com Lula: é pela barriga que se vence uma eleição
* Raphael Tsavkko Garcia
Ainda que escondamos em nossas elaborações pseudo-ideológicas, é evidente que todo eleitor, e isso independe de classe social, vota com a barriga e com o bolso. A única diferença é que, subindo a classe social, o passe fica mais caro. Eis uma dificuldade para o intelectual de esquerda que, possivelmente, custará uma nova derrota eleitoral: superar a visão romantizada do pobre como "povo dócil", engajado, mas limitado por suas condições.
O funcionário público vota em quem promete aumentos à sua categoria e se opõe a privatizações, o professor universitário vota em quem defende a educação, quem passa fome vota em quem lhe promete encher a barriga, o empresário vota em quem lhe dará incentivos ou redução de impostos. Simplista? Sem dúvida, mas em linhas gerais é o caminho que a maioria trilha. Claro, existem outros interesses conflitantes, mas não surpreende que muitos expressem surpresa quando alguém, em tese, vota contra seus interesses ou os de sua categoria.
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Chama atenção a perplexidade da esquerda com as novas pesquisas, que revelam aprovação recorde de Jair Bolsonaro, e com um crescimento sustentado pelo ganho de popularidade no Nordeste. Na maioria das respostas, vê-se uma região que, de um dia para o outro, teria deixado de ser o bastião do progressismo para ser o poço do atraso.
A verdade é que ninguém mudou a sua forma de pensar, apenas encontraram potencialmente um político capaz de responder imediatamente aos seus anseios. Nesse aspecto, Jair Bolsonaro é muito mais pragmático (ou, na verdade, foi forçado a isso). Seu discurso conservador (e, porque não dizer, fascista) ecoa em grande parte do país. Se existia um dito cinturão vermelho no Nordeste era menos por repúdio a seu discurso e mais pela memória persistente de dias de fartura. No fim, o discurso bolsonarista tem muito mais a ver com o que o grosso da população pensa do que o progressismo de butique e suavizado do PT.
Ouve-se de alguns intelectuais de esquerda que o povo no Nordeste teria votado em Lula por ideologia. Nada poderia ser mais distante da realidade. A ideia de um Nordeste progressista é coisa de quem nunca colocou os pés por lá ou simplesmente resolveu se fazer de surdo e louco. Se o lulismo ainda era forte no Nordeste, o era apenas pela memória de milhões que viram a sua vida subir de patamar.
O problema – para os ditos progressistas ainda presos ao lulismo – é que memória não enche barriga. A população do Nordeste votou em Lula porque ele prometeu que encheria suas barrigas – e efetivamente o fez. E não há nada de errado nisso. Assim como Lula encheu barriga de banqueiros que impulsionaram sua reeleição e a eleição de Dilma. Não tem ideologia alguma aí, mas apenas escolhas práticas – uns querem o poder, outros querem poder jantar.
Não à toa, Lula abandonou o discurso da esquerda pelo assistencialismo – progressismo não voa bem nos rincões. O próprio Bolsa Família foi criado à revelia de setores tradicionais do PT, por se tratar de um programa essencialmente liberal.
O eleitor do PT nos rincões não é progressista, muitos são mais próximos de Bolsonaro ideologicamente. O Brasil é um país extremamente conservador, com o número de evangélicos crescendo diariamente, com uma população que não vê com bons olhos muitas das conquistas de minorias (em particular LGBTs), mas que na hora de votar pensa primeiro na própria sobrevivência.
Agora que Bolsonaro tem dado (mesmo a contragosto) dinheiro via assistência emergencial, essa população migra o voto num piscar de olhos. É simples. Só com barriga cheia você tem tempo para ter preocupações que vão além de… encher a barriga. Claro que passa pelo "preciso continuar comendo," mas ampliam-se possibilidades. O empresário tem tempo para pensar para além de sua própria satisfação imediata – mas no fim vota para garantir que não perca aquilo que já tem. O jovem universitário de esquerda faz o mesmo. Se finge de revolucionário, mas acredita piamente que o candidato de esquerda do momento irá não apenas garantir seus "direitos", como ainda lhe dará uma posição de destaque – os pobres encherem a barriga é apenas a consequência natural do processo.
A memória de Lula não dura para sempre em barriga vazia. Se surge alguém capaz de suprir essa necessidade básica e de falar o que a população conservadora quer ouvir, a migração de votos é certa. Bolsonaro entendeu, finalmente, que transferência de renda e assistencialismo garantem voto.
Em grande parte, por ter perdido totalmente o contato com os pobres, a esquerda insiste em romantizá-los, tratando-os quase como animais exóticos. Acredita que o pobre lhe deve alguma gratidão, como se fosse possível ao eleitor viver do passado, à espera do retorno das vacas gordas. O descolamento da esquerda da realidade dos necessitados é gritante.
Por mais que não seja um fenômeno restrito aos que seguem apoiando o ex-presidente Lula, a morte do lulismo é um passo necessário. Na verdade, é a única coisa que pode abrir caminho para uma oposição real ao bolsonarismo. Hoje, a esquerda é refém dos caprichos de um homem ególatra cujo único objetivo é o de voltar ao poder (para se aliar aos mesmos que hoje estão com Bolsonaro – e que antes estavam com ele) e realizar tudo aquilo que o partido passou 13 anos no poder prometendo, mas preferiu não fazer. E de um partido cuja existência se justifica apenas pela necessidade de realizar os desejos desse líder.
Não que Bolsonaro não seja igualmente ególatra, descolado da realidade e mesmo fascista – representando um perigo real para o país e para a sobrevivência da democracia. O ponto é que o lulismo alimenta o bolsonarismo. É seu principal combustível.
Bolsonaro demorou, mas entendeu que é pela barriga que se conquistam votos e passou a defender e mesmo chamar para si a autoria do auxílio emergencial, até mesmo batendo de frente com Paulo Guedes pela manutenção da política de transferência de renda. E esse pode ser o trunfo do presidente para se reeleger – caso seja capaz de manter o auxílio, apesar de seu enorme impacto fiscal.
Sabendo jogar suas cartas, Bolsonaro tem a chance de se reeleger mesmo com mais de 117 mil mortes nas costas por coronavírus, mesmo com uma gigantesca crise econômica, mesmo com incontáveis denúncias de corrupção envolvendo seus aliados e sua família, mesmo com gabinetes do ódio e fake news. Enquanto ele for capaz de manter cheias as barrigas dos eleitores, sua aprovação tenderá a subir. Nesse momento, Bolsonaro é o maior inimigo de si mesmo – a esquerda não possui lideranças ou projeto e a direita liberal ainda não foi capaz de entender sequer qual é o jogo para o qual foi escapada.
De boca mais fechada do que nos últimos meses (pese os rompantes recentes contra jornalistas, para manter o seu costume de agredir profissionais de imprensa), o presidente tem aberto espaço para notícias senão positivas, ao menos não tão negativas como no auge da crise, quando, junto com a inépcia de sua administração, exalava-se um golpismo quase diário. As mortes por coronavírus começam a se tornar algo comum, quase banal, algo semelhante às mortes por violência diária que assolam o Brasil e que pouco servem para mudar a popularidade de políticos dos mais diversos espectros ideológicos. E, para os que acreditam que dinheiro não compra amor, bem, é melhor acordarem.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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