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Entendendo Bolsonaro

Bolsonarismo enxerga raça como entrave a seu projeto de nação

Entendendo Bolsonaro

31/08/2020 10h25

Mais "centrista", o novo bolsonarismo se desloca da supremacia branca pregada por Ernesto Araújo. Temos um vácuo de projeto nacional, a ser preenchido por uma aliança entre brancos e não brancos de centro e centro-esquerda (Joédson Alves/EFE).

[RESUMO] O bolsonarismo raíz claramente flerta com aspectos do nacionalismo branco e concebe o Brasil como um país essencialmente cristão. À medida que o presidente Jair Bolsonaro adota um centrismo de fachada, há espaço para o ressurgimento da democracia racial como mito. Apenas uma aliança entre centro e esquerda, diversa entre brancos e não brancos, e que rejeite modelos importados de combate à discriminação pode impedir tal processo. A real batalha das forças democráticas contra o bolsonarismo não é pelo bem-estar material dos mais pobres, mas pela alma da nação.

Vinícius Rodrigues Vieira

Agosto termina carregado de simbolismos para a luta contra o racismo. Iniciados em maio, após a morte brutal de George Floyd por um policial, os protestos que denunciam a violência policial contra negros nos Estados Unidos ganharam nova força após a abordagem covarde de oficiais de segurança pública no Estado do Wisconsin contra Jacob Blake, também afro-americano, que ficou paraplégico. Chadwick Boseman, intérprete do super-herói africano Pantera Negra — também rei da futurista Wakanda — faleceu de câncer em 28 de agosto, mesmo dia em que, 57 anos antes, Martin Luther King fez seu discurso histórico em que expressou sua visão de uma América em que todos seriam tratados sem distinção de cor ou raça, gerando comoção ao redor do mundo.

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E o Brasil? O que temos a ver com isso? Em meio a seu simulacro de moderação política, o presidente Jair Bolsonaro deu sinais de, muito embora ainda não ver questões raciais como centrais aos debates sobre nacionalidade no Brasil, reconhecer que existe racismo no país. Oportunisticamente, Bolsonaro move-se para o centro da questão racial, tal como na condenação da discriminação sofrida por um motoboy em Valinhos.

Embora seja aparentemente bem intencionada, a fala de Bolsonaro ecoa como um grito que silencia a luta contra a discriminação racial. Por um lado, o presidente deixa de se alinhar a uma concepção pré-Freyriana — isto é, antes da defesa da miscigenação conforme detalhado na obra de Gilberto Freyre, após a publicação de seu clássico Casa Grande e Senzala, em 1933 — de identidade nacional, que vê o Brasil como essencialmente ocidental. Tal postura foi sobretudo expressa pelo chanceler Ernesto Araújo, conforme expliquei em análise de seu discurso de posse, em janeiro de 2019, e no manifesto do Aliança pelo Brasil, o partido bolsonarista em formação.

Por outro, Bolsonaro vê na afirmação de identidades étnicas — pelo menos as de negros e indígenas — uma tentativa de divisão do país. Afinal, os governos do PT — inimigos mortais do bolsonarismo — promoveram políticas de ação afirmativa com base em cor ou raça, além de terem desenvolvido políticas específicas para quilombolas e povos indígenas. Seria interessante saber se Bolsonaro também tem reservas aos Centros de Tradição Gaúcha (CTGs) espalhados em regiões dominadas pelo agronegócio que, segundo relatos, segregam patrões brancos, oriundos do Rio Grande do Sul, dos trabalhadores pardos e pretos locais do Centro-Oeste e do Matopiba — a última fronteira da soja, na junção dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Na lógica bolsonarista que flerta (mas não se casa) com o centro, o Brasil é predominantemente ocidental, sendo esse traço principal expresso na religião, haja vista que, somados, católicos e outros segmentos do cristianismo somam aproximadamente 90% da população. Segundo tal leitura, podemos ter não brancos entre os brasileiros, desde que não sigam tradições culturais de origem africana ou impactadas pelos povos do outro lado do Atlântico Sul. Não à toa, no Rio de Janeiro, Estado com grande proporção de evangélicos e base eleitoral principal da família Bolsonaro, os relatos de destruição de terreiros — muitas vezes promovidos por traficantes — se avolumaram nos últimos anos.

No país do bolsonarismo pretensamente centrista, não há espaço para manter cotas raciais na pós-graduação, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta à consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo Educafro (entidade que sempre esteve na vanguarda das demandas por cotas), estabeleceu uma reserva para candidatos negros, proporcional à sua participação nas chapas a partir de 2022.

Talvez surjam na Justiça Eleitoral, tal como nas universidades, as chamadas comissões de verificação de autodeclaração — que se assemelham a tribunais raciais. Não obstante as controvérsias cercando essas comissões, algum controle deve ser necessário para evitar desvio dos fundos. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, teria direito a recursos do fundo por ter se declarado como pardo em 2018, classificação depois corrigida. Para o IBGE, não há a categoria negro. Negro equivaleria a soma de pretos e pardos.

À esquerda, o fundo é visto como vitória, muito embora equiparação de pardos a negros silencie outras identidades, como aquela de descendentes de índios e brancos — o alto percentual de pardos em estados da região Norte indica que pardo é também uma categoria escolhida por tais mestiços.

Aliás, esse debate remete às desigualdades entre brancos de origens distintas e à relativa boa situação econômica de grupos que, todavia, são culturalmente discriminados. Ao escrever este artigo, dei-me conta de que todos meus chefes em 18 anos no mercado de trabalho ostentavam sobrenomes japoneses, judaicos, italianos ou alemães. A exceção foi um "Santos", descendente de, digamos, uma família "bem relacionada" do Maranhão.

No melhor do meu conhecimento, um silêncio quase sepulcral na academia sobre as eventuais desigualdades entre brancos no Brasil, decorrentes de sua origem étnica. Um dos poucos trabalhos desenvolvidos nessa seara é um texto para discussão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do pesquisador Leonardo Monasterio, que indica que brancos com sobrenome ibérico têm ganhos médios menores que aqueles com sobrenomes alemães ou italianos.

Antes disso, com base em dados da antiga pesquisa mensal de emprego, de junho de 1998, parcialmente disponível no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi identificado que, dos brancos, aqueles com ancestralidade árabe e judaica são os mais ricos. Na rabeira, vinham os que descendem de alemães, em tese mais claros e, portanto, mais valorizados pelo fenótipo na lógica racista que ainda governa as relações sociais no Brasil.

Porém, diferentemente dos autodeclarados brancos, mas com ancestralidade italiana ou portuguesa, "alemães" estavam há 20 anos concentrados nos estados do Sul, menos ricos que São Paulo, cujas lavouras de café receberam milhares de migrantes da Itália. Há, portanto, desigualdades regionais misturadas às raciais. Os dados sobre renda não estão disponíveis online, mas foram por mim citados no livro Democracia Racial, do Discurso à Realidade: Caminhos para a Superação das Desigualdades Sociorraciais Brasileiras (Paulus, 2008).

Tais diferenças por ancestralidade entre brancos nos levam, portanto, a levantar a hipótese de que brancos brasileiros praticam o que no contexto americano é denominado "etnicidades opcionais", conceito desenvolvido pela pesquisadora Mary Waters, segundo o qual brancos assumem sua ancestralidade caso queiram já que estão "diluídos" após dolorosos processos de assimilação. Fácil, portanto, criticar os irmãos negros por louvarem Wakanda enquanto, no íntimo, os irmãos brancos orgulham-se dos legados encarnados em Roma, Madrid, Lisboa e demais capitais ocidentais dos países de seus ancestrais.

Ao relatar os fatos acima, não estou cometendo, segundo Bolsonaro, o pecado de dividir o povo brasileiro. Este é segmentado, aliás, como são as populações de todos os países do mundo, inclusive aqueles que, após séculos de tentativa de unificação cultural e linguística, como na Europa, ainda possuem identidades étnico-raciais significativas.

Ironicamente, a tese de Bolsonaro sobre sermos um povo único não se sustenta em sua própria chapa. O vice-presidente Hamilton Mourão declarou-se indígena ao TSE, tendo, de fato, ancestrais no Estado do Amazonas. Como ele mesmo disse em agosto de 2018, "[e]stá aí essa crise política, econômica e psicossocial (…) Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. E eu sou indígena, meu pai era amazonense. E a malandragem é oriunda do africano. Então esse é o nosso cadinho cultural".

Mais que expressão do bolsonarismo raíz, a fala de Mourão reflete o centrismo nas relações raciais brasileiras — isto é, seu normal. Todo mundo que vem de família mestiça sabe disso. A prole branca, quiçá loira, e descrita como bela e inteligente, restando outros adjetivos aos morenos (isso fica mais óbvio quando se nasce claro e sua pele muda). Como escreveu Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, eivado de algum preconceito, "Portugal é por excelência o país europeu do louro transitório ou do meio-louro. Nas regiões mais penetradas de sangue nórdico, muita criança nasce loura e cor-de-rosa como um Menino Jesus flamengo para tornar-se, depois de grande, morena e de cabelo escuro.

A mestiçagem, neste centrismo racialista que precede o bolsonarismo e tem suas origens no varguismo, seria uma estratégia para, como ainda ouvimos por aí, "evoluir a raça". Conceito sociológico, é tido como biológico ainda pela maioria da população, tornando-se, portanto, incômodo para os que procuram um consenso forçado. Não à toa, para o bolsonarismo raíz, o cerne da nacionalidade reside na religião, em contraponto ao elogio à mestiçagem e sincretismo da era pós-Vargas, atualizado no pós-democratização na forma de um multiculturalismo à brasileira, com raça sem etnicidade.

A esquerda, no combate ao unitarismo bolsonarista e ao centrismo racialista, busca dotar a raça de etnicidade. Parece-me impossível não ver essencialismo em setores do movimento negro que defendem não apenas o resgate da cultura afro e suas contribuições para a cultura nacional, mas o discurso (muitas vezes implícito) que todos de pele escura devem praticá-la.

Trata-se de um birracialismo que ecoa a lógica anglo-saxã, herdeira do puritanismo protestante que, combinado ao iluminismo, gerou a obsessão de categorizar o mundo, inclusive os indivíduos. Como também expliquei em Democracia Racial, com base em referências secundárias, as noções contemporâneas de raça e nação surgem no contexto pós-reforma. O Brasil evangélico também parece estar interessado em colocar as coisas em seu devido lugar, como sugere a manifestação — ora implícita, ora ostensiva — de lideranças ditas cristãs contra elementos da cultura nacional, notadamente o Carnaval, festa em que o sincretismo — goste-se dele ou não — expressa-se em sua plenitude.

Tentativas do catolicismo à esquerda de reconhecer a mestiçagem e, portanto, o sincretismo, acabaram sufocadas pelo avanço do birracialismo em seu campo ideológico e, à direita, pelas denominações evangélicas. Dom Pedro Casaldáliga, o bispo vermelho que também nos deixou em agosto, fez em parceria com Milton Nascimento e Pedro Tierra em 1982 o disco Missa dos Quilombos, uma obra magistral desde o ponto de vista cultural, demonstração cabal de que, mais que expressão de um "projeto de branqueamento" das elites, a mestiçagem e o sincretismo podem servir de base para a construção de uma nação inclusiva. Como argumentado pelos pesquisadores Antonio Luigi Negro e Ana Cristina Rocha, em Salvador, nossa Roma Negra, a cultura negra e sincrética se impôs sem, porém, implicar em mudanças na hierarquia econômica-racial.

O Brasil não foi construído com base numa oposição birracial cultural, entre brancos e não brancos. Dito isso, muito embora o birracialismo seja uma construção estrangeira, quando o Estado se manifesta no micro-nível, quem é branco fica claro. Como se diz, no Brasil, a polícia sabe quem é negro ou não. Enquanto escrevia este texto, nossos George Floyds e Jacob Blakes sofriam experiências terríveis nas mãos de autoridades e de seus pares, reduzindo, assim, as chances de que se tornem Chadwick Boseman — ou seja, cidadãos bem-sucedidos, respeitados independentemente de sua raça. De fato, segundo o Atlas da Violência, entre 2008 e 2018, a taxa de homicídios entre pretos e pardos subiu quase 12%, havendo movimento inverso entre brancos, indígenas e amarelos.

Numa era de nacionalismos, não convém deixar com a direita o monopólio da identidade nacional, ainda mais porque movimentos transnacionais legítimos, como é o caso da busca pela negritude, correm o risco de serem rotulados como quinta-coluna. A defesa de uma nacionalismo cívico em torno de valores que reconheçam a singularidade da formação histórica do Brasil, em que o birracialismo é um elemento estranho, torna possível a unidade na diversidade para além da retórica vazia. O aparente naufrágio do Aliança pelo Brasil abre uma janela de oportunidade para que o centro e a esquerda encontrem uma alternativa que não repita o mito da democracia racial sem, no entanto, reproduzir modelos estrangeiros limitados.

Aproveitar tal janela envolve, sobretudo, deixar o debate aberto a todos que querem dele participar. Nesse sentido, a academia, predominantemente branca, em muitos casos dominada por colegas de ancestralidade não ibérica, deve receber novas vozes, novas ideias além dos modelos enlatados.

Kamala Harris, de ancestralidade indiana e jamaicana, pode chegar lá, virando a primeira vice-presidente não branca dos Estados Unidos, tal como Barack Obama fez história sendo o primeiro mandatário não branco do país. Na base, enquanto não houver cidadania de fato, Georges e Jasons serão dizimados no país-modelo para ações afirmativas. O mesmo se aplica ao Brasil: de nada adiantará o aumento da representatividade na política e a eventual derrota do bolsonarismo em 2020 se velhas ideias e práticas prevalecerem. Wakanda forever, mas sem nos esquecermos da nossa eterna Roma Negra.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


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