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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro só é presidente porque somos covardes

Entendendo Bolsonaro

11/11/2020 09h20

O capitão que subjugou os generais coloca-se como um rei de si e de seus zeros à esquerda, sem povo (Foto: Gabriela Biló/Estadão).

Vinícius Rodrigues Vieira 

Jair Bolsonaro acertou pela primeira vez na presidência: somos um país de covardes – ou, melhor dizendo, de maricas. Em que pese a origem preconceituosa da palavra, uma forma pejorativa de se referir a homens homossexuais, esse é o seu significado atual. Apenas um bando de parvos poderia ter deixado alguém como o atual presidente – que coloca a suas ambições política pessoais acima da vida dos cidadãos – ocupar o cargo máximo da nação.

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Ontem (10), Bolsonaro cavou ainda mais o fundo do poço. Nada, porém, de anormal para quem já desvendou a cartilha do populismo de direita tropical: encarne o "macho man", capaz de sobrepujar a ciência e desrespeitar os mortos e seus familiares. Seja o pretenso homem do povo, mas não se esqueça de humilhar a si e a nação perante líderes estrangeiros sob uma pretensa defesa da liberdade.

De manhã, o presidente comemorou a morte de um compatriota que, voluntariamente, recebeu a Coronavac. Descobriu-se mais tarde que fora suicídio, elevando as suspeitas de que os testes com a vacina, oriunda da China e trabalhada no Brasil pelo governo João Doria, em São Paulo, foram suspensos por mera politicagem.

No fim da tarde, Bolsonaro sugeriu reagir militarmente a eventuais pressões do futuro governo Joe Biden, cuja vitória vergonhosamente ainda não reconhecemos. O capitão que subjugou os generais coloca-se, assim, como um rei de si e de seus zeros à esquerda, sem povo.

Somos maricas há anos, quiçá há séculos e gerações. Somos maricas na cultura, fomos maricas quando nos tornamos independentes e engolimos o poder moderador. Mariquice-mor foi, porém, aceitar a abolição da escravidão sem fazer a reforma agrária.

Continuamos a ser maricas cada vez que nos silenciamos diante de mulheres estupradas e humilhadas na Justiça e das vítimas do trânsito, cujos assassinos raramente são punidos.

Afirmamos nossa condição de maricas ao aceitarmos 160 mil mortos e, sem qualquer empatia, não usarmos sequer uma máscara em compaixão aos mais vulneráveis à covid-19.

Maricas fomos quando fechamos os olhos para a corrupção estrutural da Nova República, assim como quando fingimos que rachadinha não é roubalheira.

Maricas somos quando aceitamos uma polícia que mata desproporcionalmente os não brancos enquanto se alia a foras-da-lei, inclusive milicianos.

Maricas foram os pretensos liberais que, sem vergonha, apoiaram para a presidência um ex-militar aposentado após ser julgado por planejar explodir bombas no Rio de Janeiro, em 1987.

Maricas são os integrantes de uma esquerda oligárquica e aristocrática, que raramente apoia a candidatura de novos nomes, sejam eles negros, mulheres e demais minorias.

Maricas são, sobretudo, aqueles que juraram dar a vida pela nação, mas enchem os bolsos por meio de sinecuras e batem continência para o capitão.

Maricas seremos enquanto não tomarmos as rédeas do presente para, com nossas próprias mãos, construir o futuro, em vez de aceitá-lo como comida podre, empurrada goela abaixo. Maricas serão aqueles que se recusarem a formar uma frente ampla contra o atual governo em 2022, deixando vaidades pessoais se sobreporem ao imperativo de defender nossa própria existência.

Mas nem sempre fomos maricas. Tiradentes, enforcado, não o foi. José Bonifácio, homem da elite, era contra a escravidão. Luiz Gama, negro forro, libertou seus irmãos. Vargas, um oligarca, liderou a revolução que nos modernizou. Dr. Ulysses, um centrista, liderou a promulgação da Constitução cidadã. Marielle Franco, heroína, teve a vida ceifada à bala por denunciar os amigos do rei de plantão.

Obrigado por abrir os nossos olhos, Bolsonaro! Que nós, os maricas, respondamos o "rei" à altura em 15 de novembro, dia em que celebramos a República fundada por um golpe militar assistido por olhos bestificados. Que, naquele dia, nós, os maricas, não assim sejamos pelo menos uma vez na vida e ignoremos os candidatos apoiados por alguém que só tem coragem para defender a própria pele.

Maricas do Brasil: uni-vos, e, mais dia, menos dia, o capitão fará companhia ao supremacismo trumpista na lata de lixo da história! Depois que acabar a saliva, usemos a pólvora – melhor dizendo, nosso voto.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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